Sou homem, heterossexual, no Brasil sou tratado como branco, enfim, estou no topo de uma cadeia alimentar que me assegura facilidades pelas quais jamais lutei. Ganhei-as de herança cultural, simplesmente por ter nascido como nasci. Se fosse magro, e nisto talvez até pudesse colher algum mérito pessoal, a sociedade me estenderia um tapete vermelho. Seria um predador empanturrado de privilégios espontâneos.
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Sujeitos nesta posição de conforto precisam esculpir cada sílaba antes de discorrer sobre o comportamento de quem não está protegido pela ordem dominante. É muito fácil atrapalhar, às vezes sem premeditação, mas com igual potencial destrutivo, o esforço de quem busca o mesmo respeito que nos chega de presente.
Só não dá para fingir cegueira diante de uma esquisitice masculina que se agiganta entre as meninas a cada novo bebê trazido ao mundo: Quando foi que as mães entraram neste jogo do “meu é maior que o seu”?
Claro que minha perturbação, como toda reação de um privilegiado, tem quê de egoísmo. Ao ser despejado da barriga da Dona Gicelda por um talho aberto na vertical, logo abaixo do umbigo, soltei meu primeiro choro com 2,6 quilos. Fico imaginado minha mãe vítima de comentários malvados, emitidos aos cochichos:
– Tadinha, gerou um bebê tão mirradinho…
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Desde a primavera de 1973, quando provavelmente arruinei a reputação da minha mãe com minha avareza corporal, passei mais da metade dos dias com o peso somado em três dígitos. Sou uma prova roliça do caráter apressado e pouco científico dos juízos emitidos pelos tribunais do tamanho do filho alheio. Não há acanhamentos ou farturas primordiais que sejam perpétuos.
Mães de recém-nascidos na casa dos quatro quilos assumem imediata predileção pelo assunto, no que são, via de regra, acompanhadas pela família. Pode ser orgulho pela conclusão com louvor de uma tarefa biológica complexa, mas, sobre as razões deste súbito furor métrico, não me vejo em condições de ir além de presunções.
Aliás, admito certa cretinice ao abordar tema tão delicado num tom de humor, ainda por cima ruim. Não existe empatia capaz de reproduzir o redemoinho de sentimentos de alguém que se vê emprestando o próprio corpo para a manutenção da espécie. Nós, homens, privados deste processo pela natureza, falamos sempre de uma distância amazônica de qualquer angústia maternal.
Também não temos lá muita autoridade moral para questionar obsessões anatômicas, visto que passamos os dias miseravelmente refletindo sobre as dimensões de nossas partes.
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Apenas creio que um momento tão sublime, como o alvorecer de uma vida, oferece oportunidade para revisão de valores que nos sufocam. A matemática é uma ciência lindíssima, poética até. Mas, quando usada para a imposição de modelos, alheia às nuances reconhecidas pela Medicina e que compõem nossa riqueza como raça, deixa apenas a pressão impiedosa dos números.
São eles, os números, que tentarão dizer quem somos neste mundo masculino, carente de oxigênio. Que pelo menos nos primeiros dias, protegidos pelo amor singular das mães, possamos ser do jeito que viemos, sem ninguém atrapalhando nossa inocência com métricas mesquinhas.