Tenho uma amiga, irresponsável a ponto de confiar a mim tarefas de formação religiosa, convidando-me para padrinho do filho. Pois minha comadre insiste em recordar de um antigo Carnaval, quando, no meio de uma quadra de escola de samba, levitando no compasso do surdo, ladeado de nádegas lustrosas, soltei um agradecimento ao acaso geográfico que me fazia estar ali, no meio daquela apoteose sonora.
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– Ainda bem que não nasci na Noruega! Ainda bem! – e me fui quadra adentro, sambando miudinho.
Reminiscências assim brotam quando, duas décadas depois, me ponho em azedume profundo com a proximidade do Carnaval. Não que tenha deixado de apreciar o compasso do surdo e as nádegas lustrosas. Perdi a santa paz da ignorância que me levava a agradecer aos céus o fato de não se nórdico ao me dar conta da mecanização excessiva da folia. A espontaneidade deu lugar a um conjunto de normas por demais sufocantes.
Até uns fevereiros atrás, não conhecia nada mais castrador do Carnaval do que uma escola de samba. Tanto que jamais fui à avenida, sempre confinei meus arroubos juvenis nos ensaios. Tempo, ritmo, capacidade de investimento na fantasia, alívio de culpa para uma classe média dissimuladamente racista, notas, metas, tudo contribui para a opressão dos desfiles. A gente já passa o ano inteiro cobrado por tudo e por todos. O Carnaval deveria servir como um espaço de despressurização, pôxa.
Pois os blocos de rua meio hispters, que seriam um contraponto a este regramento opressivo, passaram a exigir tese de antropologia para cada alegoria. Se o cara usa um turbante com déficit de melanina, por mais ciente que seja da crueldade da nossa sociedade para com os negros, periga ser condenado sumariamente nestes tribunais da apropriação cultural. Mas a coisa vai além da questão racial. Uns dias atrás, esta gente bronzeada mostrou seu valor proscrevendo dos blocos marchinhas como “Cabeleira do Zezé” e “Maria Sapatão”.
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Não reforço as fileiras dos críticos do politicamente correto, porque acho esta posição intelectualmente preguiçosa e conceitualmente mesquinha. Não se promovem mudanças pedindo por favor, chamando à consciência de quem foi convencido pelo mundo a não tê-la. Mas sigo em 1968, aquele ano que não acabou, cada vez que alguém vem reescrever o passado. É proibido proibir, nunca é demais lembrar.
A mim, banir marchinhas com versos infelizes soa como tirar nomes dos generais ditadores das avenidas e das praças, como excluir Monteiro Lobato das escolas. Varre-se a podridão sem contextualizações para debaixo do tapete, quando o mais inteligente seria refletir sobre o que fomos e por que não devemos voltar a sê-lo. Quando proíbem, debaixo de arrogância autocrática, tenho vontade de voltar a agradecer aos céus por não ser norueguês enquanto sambo miudinho, perguntando “será que ele é?”.
Mas estou cansado demais para isto. A coisa mais transgressora que se pode fazer nesta folia com arreios é passar quatro dias tomando chá.
Estão servidos?