“Sempre senti atração por esse pequeno espaço: o ser humano? Um ser humano. Na verdade, é lá que tudo acontece”. Enquanto derreto pedalando ladeira acima, naqueles hiatos quando o oxigênio chega aos músculos e a vida retoma o espaço que a morte ensaiava roubar, sinto a mente ofegante com a frase da escritora bielorussa Svetlana Aleksiévitch. Li-a uns dias atrás, na revista Piauí.

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Vencedora do Nobel em 2015, a autora de sobrenome impronunciável narra a experiência soviética a partir do olhar de gente desprezada pela história oficial, como soldados e mulheres. É comovente como algo tão grotesco como uma ditadura castradora de costumes, que por décadas operou pelo sufocamento do indivíduo, possa gerar abordagens tão delicadas, até líricas, como faz a Svetlana.

Bem, naquele trajeto que separa minha casa da firma, transpirando ferozmente, observo esse pequeno espaço, o ser humano, transformado pela rudeza do ambiente. O trânsito seria tão violento quanto um regime soviético, não fosse a incapacidade de corroer a individualidade. É lá, nas entranhas de quem conduz um carro, neste império interior, que tudo acontece.

Passei a encarar o trajeto de bicicleta porque meu carro foi para o conserto e, como peça da indústria automobilística está em vias de se tornar tarefa de gincana, tal a dificuldade em obtê-las, estou há longas semanas sem carro. Mas a tendência é que eu siga me deslocando com tração animal daqui para frente.

A ineficiência da indústria que deu as cartas no mundo por décadas elevou minha impaciência ao extremo. Sou de uma geração criada para interpretar o carro como símbolo de que as coisas vão bem. Uma legítima reação ideológica nos reduz a pequeno-burgueses insensíveis, alheios ao planeta e às cidades asfixiadas. Como as montadoras retribuem nossa lealdade? Fazendo desaparecer as peças na primeira crise que se apresenta. Tenho a impressão que uma estatal da URSS de Svetlana seria mais ágil.

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Pois tem sido um laboratório revelador a experiência de compartilhar o asfalto no papel de minoria frágil, ignorada pela maioria que ruge pelos pistões. Ninguém precisa andar de bicicleta para constatar a escassez de solidariedade. O que me espanta nestas observações de neociclista é a submissão de todos a urgências inventadas.

Não falo só do desrespeito ao limite de velocidade, porque um homem na minha idade já esgotou certas cotas de ingenuidade. A manifestação suprema do egoísmo se dá pelo uso incessante do celular enquanto se dirige. Já fui quase atropelado por um sujeito para quem não sobrou mão para ligar o pisca, tão ocupado que estava digitado mensagens. Outra vez, com os pulmões à beira de um colapso, tive de frear porque, diante do semáforo com luz verde, uma menina se detinha dedilhando o aparelho.

Sou cauteloso o suficiente para não decretar a falência da humanidade depois de escassos 15 dias no selim. A negação da existência do outro não reside apenas na maldade, às vezes é fruto da desatenção. Mas as urgências que levam ao desprezo, como sugere a bielorussa, só acontecem dentro de nós. E é justamente pela inventividade destrutiva ao volante que, diferentemente dela, tenho sentido menos atração por esse pequeno espaço: o ser humano.