Até a faculdade, favorecido pelo fato de ter estudado em escola pública, sem grandes rigores avaliativos, construí um histórico escolar quase imaculado. Meu maior deslize, nota 1,4 em Moral e Cívica, foi compensado com três sucessivos 10 nos bimestres seguintes, o que me desobrigou do período de reforço. Relato aquele fracasso momentâneo com parcimônia, porque hoje, com filhos em idade escolar, um deles já no ensino médio, temo contagiá-los com minha irresponsabilidade juvenil.
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No caso desta nota fatídica, lamento ter perdido a chance de justificar aos meus pais que se tratava de um boicote contra a disciplina criada pelo regime militar para doutrinar as criancinhas do Brasil gigante. Aos nove anos, eu ainda não recebera o verniz marxista que lustra minhas ideias desde a faculdade. Ainda era um ser em estado burguês latente, incapaz desses nós retóricos.
Bem, falando da universidade, foi lá que conheci minha primeira decepção estudantil. Fui reprovado em Fotojornalismo. E de forma impiedosa, com a nota publicada nos murais dos corredores. É que nunca me senti à vontade naquelas salas claustrofóbicas, de escuridão quebrada por luzes vermelhas (sim, confesso, me diplomei antes da informatização do laboratório).
Só desfiz o trauma daquela reprovação quando as máquinas digitais, que experimentaram o apogeu lá na metade dos anos 2000, devolveram-me a segurança de poder olhar a foto antes de qualquer um. Era libertador, uma proteção contra os constrangimentos patrocinados pela minha incapacidade de captar a luz com alguma dignidade.
Portanto, sou grato às máquinas digitais, hoje proscritas pelos ismartifones. Mas, previno, este texto vai responsabilizar os celulares pela nossa perda da capacidade de contemplação. Ninguém mais se dispõe a enxergar o mundo sem o intermédio de lentes. A ansiedade por registros para rápido e exibicionista compartilhamento está nos privando de desfrutar o presente.
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Vivi o auge desta doença social diante da Monalisa, no Louvre. Centenas de chineses se acotovelavam diante do quadro. Nenhum colocou a mão no queixo para, com ar pensativo, identificar sutilezas nas pinceladas de Da Vinci. Todos disparavam flashes freneticamente. Não seria mais inteligente comprar uma cópia em qualquer lojinha de Paris?
Mas viagens, de uma forma ou de outra, se recuperam. O problema é a parte de momentos únicos e fugazes. Certa manhã festiva, testemunhei o suprassumo do desperdício do presente. Enquanto o noivo domava emoções no altar, o pai dele, incapaz de enxergar os sentimentos do filho, se contorcia espalhafatoso atrás de um ângulo, com o celular em punho. Trocou uma lágrima que jamais voltará a cair por uma imagem aquém das feitas pelo fotógrafo profissional contratado para o casamento. Naquele instante, tive a certeza de quanto esta ansiedade por fotografar tudo e a todos anda nos afastando do que realmente faz sentido.