O cérebro humano aprimorou-se para nos oferecer algum conforto no terreno selvagem onde a vida germinou e, bilhões de anos depois, segue seu curso sem propósito aparente. É em razão desta generosidade bioquímica que, tão logo tomamos consciência da nossa própria finitude, passamos a tratar a morte como uma abstração. Algo distante dos sentidos, impalpável, quase uma peça sem legenda num museu de arte moderna. Funciona, porque se a gente não se detém em pensamentos fúnebres vai adiante, entorpecido pela ilusão de que há um sentido maior a nos guiar.
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Faço uso abusivo desta faculdade neurológica para abrandar sofrimentos. Minha máquina gosmenta tritura dores com tanta eficiência que, quando vejo meu filho feito homem, suspiro nostálgico dos tempos em que ele era um bebê. O cérebro apagou as recordações das madrugadas insones, dos dedos besuntados de matéria orgânica presente em fraldas, dos pedidos de colo quando o cansaço já ameaçava minha condição de bípede. É uma bênção o que o cérebro faz por nós.
Como fico confortavelmente esparramado no mundo cor de rosa inventado pelo meu cérebro, me esforço para não parecer ingênuo. Ouço com atenção os que não sucumbem à preguiça de refletir sobre as próprias dores. Sempre aprendo com quem encarou a morte e, como num verso de Cazuza, constatou que ela estava viva. Sobreviventes deste encontro falam coisas reveladoras.
Apesar do entusiasmo como ouvinte, tem um padrão que me incomoda nestas narrativas. O cara escapa da morte e se diz beneficiário da benevolência de Deus Pai Todo Poderoso. Certamente, almas fragilizadas são esponjas de argumentos metafísicos. Há inclusive quem diga, numa tese desprovida de maior rigor científico, que, num avião em queda, não existem ateus. A razão oxida sob o hálito da morte.
Mesmo sabendo deste afrouxamento das convicções em meio ao desespero, não deixo de considerar mesquinha a interpretação da intervenção divina. Sobretudo quando a experiência de quase-morte foi compartilhada com outros, que, a julgar pelo resultado, não desfrutavam da simpatia de Deus. Se houver algum fundamento no que dizem, passarei a evitar a companhia destes eleitos. Não gostaria de ser o próximo preterido.
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Meu desconforto foi ao paroxismo quando, em visita a um santuário católico no interior de Goiás, deparei com uma galeria de quadros chamada Sala dos Milagres. Nestas obras doadas a título de agradecimento por graça alcançada, sobreviventes de tragédias pessoais reproduziam o instante quando, na versão deles, uma intervenção divina os salvou da morte líquida e certa.
Não esqueço de uma tela cujos traços, algo naïf, representavam uma onça jogando-se no pescoço de um homem, sob a testemunha de outro, que, ajoelhado, parecia orar. Na legenda, o devoto agradecia por, no distante ano de 1938, após rogar ao Divino Pai Eterno, o felino ter se desviado dele, atacando mortalmente um sujeito chamado Teodoro. Ou seja, se Deus de fato interveio, desconsiderou a homenagem que a mãe do falecido lhe fizera.
Religiões ajudam o cérebro a dar alívio diante da morte inevitável. Mas poderiam ser melhor sucedidas para esvaziar o ego daqueles que imaginam ter ressuscitado.