Havia poças esparsas, com discretas borbulhas de detergente, espalhada pelas lajotas que separam o elevador da garagem. Nestes cinco metros, talvez seis, panos estrategicamente posicionados represavam a água, oferecendo estreitas passagens para pedestres.

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Quando é assim, todo homem com peso medido em três dígitos calcula cada passo como se estivesse num exercício do método Marina Abramovic: um pé só decola, lentamente, quando o outro já aterrissou, com idêntica demora. Apesar de concentrado no equilíbrio corporal, divisei meio de soslaio o macacão azul escuro, quase preto, da menina da limpeza do prédio.

Estava subida numa dessas escadas móveis, firmada em diagonal contra a parede. Esfregava com delicadeza o forro. Soltei um bom dia protocolar, mais automático do que o de manhãs de lajota seca, porque o esforço mental para honrar a condição de bípede me exauria quase toda energia vital. Estranhei o silêncio dela, embora considere inteiramente legítima a ausência de resposta para bons dias pronunciados sem sinceridade, apenas para amenizar culpas de classe média com consciência social.

Trata-se de um tipo humano característico destes tempos em que fingimentos públicos de integridade moral se confundem com virtude. É gente que fica horrorizada quando madames sobem ao Feicebúqui discursos de alto teor escravagista contra a empregada doméstica, pragueja quando clubes de bacana proíbem babás de usar o banheiro dos adultos, mas nada fazem além desta indignação digital. Nem mesmo limpa a própria privada. Se calhar, para eles, empregada boa é empregada barata. Você deve ter conhecidos assim, presumo.

Bem, voltemos ao meu trajeto por umidades assustadoras. Mais uns passos abramovictianos à frente, a sola do All Star enfim pousou em segurança no piso áspero do estacionamento. Só aí, quando retomava contato sensorial mais amplo com o ecossistema ao redor, captei os versos que emanavam do alto da escada.

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– Deus fez por tiiiii!!! – cantarolava a menina da limpeza, num volume ainda em parâmetros civilizados, mas audíveis o suficiente para me alimentar pensamentos.

Com fones acoplados aos ouvidos, a menina da limpeza exalava felicidade sob a trilha gospel. Conjugava duas coisas que de fato tornam a existência mais leve: a endorfina, derivada do suadouro mal remunerado para exterminar a sujeira feita pelos outros; e a fé, abstração capaz de preencher o vazio dos dias.

Nós, da classe média com consciência social, nos servimos de endorfina nas academias e parques de bairros centrais, sempre bem cuidados por prefeitos tementes a chiliques de rede social. Mas a fé, bem, nos esforçamos obstinadamente para tirar das pessoas, enquanto juramos encontrar Deus no hambúrguer vegano gourmet. Por que nos parece tão insano que as pessoas encontrem na igreja o que buscamos no Food Truck?

Sigo com extrema dificuldade de crer Nele, sou cínico demais para abdicar da razão. Mas estou convencido de que só entenderemos a necessidade do outro quando pararmos de andar por aí concentrados demais em nós mesmos, como se estivéssemos em meio a poças esparsas num piso de lajota.

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