Houve um tempo em que desejei, com todo o ardor juvenil, ser guarda municipal. Tudo por inveja de uma poetisa que, diante da impossibilidade de sobreviver dos próprios versos, uma maldição que parece se repetir com 11 em cada 10 escrevinhadores desta raça, aceitou vigiar a máquina de cartão-ponto numa prefeitura. Ficava ali solitária, sem farda, cândido olhar, semblante relaxado, mas revestida de autoridade quase policial.
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Até hoje não entendo a estratégia de defesa formulada pelo Major, cujo posto virou apelido, o tal comandante da corporação recém-criada que na verdade era um capitão reformado da PM. Mas o veterano militar devia ter suas razões para designar a poetisa como sentinela num corredor úmido, algo escuro, onde só passavam servidores que, salvo um olhar paranoico, jamais esboçavam aquilo que policiais definem como atitude suspeita, sobretudo se o sujeito observado for negro e pobre.
Se foi por motivo de espionagem, receio que o gosto da poetisa pela leitura tenha frustrado os planos do Major. Da sala de assessoria de imprensa, onde eu estagiava, testemunhava a poetisa se banquetear com horas e horas de leitura remunerada: Drummond, Quintana, Rilke, Cecília, Neruda, Pessoa e, porque se tratava de uma leitora eclética, Leminski e Blake. Aquilo é que era emprego. Todo o resto é escravidão.
Volta e meia, o Major recorria ao senso de humor da caserna e, quando a comandada ia ao banheiro, desmarcava a página do livro. Pegava o marcador de texto e, com um riso amarelo, metia numa passagem qualquer, aleatoriamente. Na volta, depois de breve estranhamento, a poetisa restabelecia as sinapses e voltava ao verso abandonado, convicta. O Major ficava embasbacado. Talvez nunca tenha lido nada com a alma. Buscava no livro a utilidade que se busca, por exemplo, numa enxada. É triste, mas muita gente lê assim neste Brasil. Ainda assim, é melhor que leiam.
Bem, vinha daí minha inveja da poetisa, que, elevada ao extremo, me fez cogitar uma carreira de guarda municipal. Há muitas vagas para leitura remunerada no mercado de trabalho, mas nenhuma tão diletante quanto aquele posto de sentinela ao lado do cartão-ponto de uma prefeitura de província. Ali só se lê por prazer, sem prazos ou pressões. Até uns tempos atrás, quando o jornalismo e os ofícios paternos me deixavam temporadas sem literatura, via meu espírito de vigilante se agigantar. Mas agora, quando a paranoia nos faz reclamar um cara armado em nome do Estado em cada esquina, quando o discurso bolsonarista da bondade do bandido morto toma até corações potencialmente bons, não quero mais saber desta profissão. A fantasia acabou.
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Fico imaginando o Major arrancando os livros das mãos da poetisa e lhe entregando uma arma. É a perfeita metáfora da forma apressada como queremos resolver o problema da segurança pública.