Não sei ao certo se o calor vinha da pressão exercida pela envergadura de quase dois metros ou da pulsação do sangue derivado do meu, mas, em meio ao conforto térmico despertado pelo abraço de um filho, mantive lucidez para ouvi-lo sussurrar:

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– Pai, um dia te pago uma refeição.

Estávamos diante do caixa do bar onde havíamos passado as últimas três horas atentando contra os sistemas digestivo e circulatório, comendo frituras umidificadas por refrigerante com fenilalanina – para alimentar também a hipocrisia, claro.

Só de disquinhos (leia-se disquin), dádiva oferecida à humanidade pela culinária de Goiás, fizemos desaparecer três dúzias. A julgar pela irresponsabilidade no exercício da paternidade, não estava em condições morais de receber tanto afeto.

Mas meu guri, o Inácio, sempre exalou empatia. Nem quando a idade permitia entendeu-se como ponto central do universo. E a percepção do outro só se acentua com o passar dos anos, para orgulho deste velho aqui. Bem, quando o caixa do boteco apresentou a conta, dando dimensões monetárias ao excesso que já nos massacrava fisicamente, o cara se sentiu na obrigação de retribuir, assinando uma promissória verbal em meio a um abraço.

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Comovido, ainda me detive uns segundos grudado nele antes de me afastar um pouquinho e balbuciar:

– Aceito teu convite com muito gosto, cara. Mas não te preocupa comigo, se quiseres ser pai, paga para teus filhos.

Desencadeei ali uma linha de raciocínio que só agora, enquanto escrevo, se sedimenta na razão. A vida é uma corrida de bastão entre as gerações. Talvez tenha sido o ensinamento mais valioso extraído do exemplo do meu pai, que, desde o longínquo 1973, quando fui despejado da paz do útero materno, não faz outra coisa que não entrar no fim da fila em favor dos filhos. Eu, minha irmã e meu irmão viajamos, estudamos na universidade, tudo antes dele.

Jamais esboçou questionamentos existenciais diante de todas as renúncias pessoais que, só quando me tornei pai, pude compreender. Certamente, quando a vida parecia exigir demais, meu velho teve desconsolos, cansaços emocionais, temores sobre o sustento da família. Todos temos, é do jogo. Mas o que sempre ficou, com uma sinceridade à prova de dúvidas, foi o prazer dele em nos proporcionar oportunidades e experiências, tanto faz se comezinhas ou eternas.

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O Inácio talvez precise menos de mim para entender o próprio papel nesta corrida de bastão. Dá sinais de que seguirá transmitindo carinho pelas gerações que virão. Porque o amor independe da capacidade de se pagar uma viagem ou um prato transbordante de disquin com refrigerante dietético: tudo gira em torno da linda sina de cuidar e ser cuidado ao longo do tempo.

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Nesta temporada de tristezas, quando a morte impõe um vazio nacional e desafia o sentido das coisas, temos aí um fio de consolo. Podemos partir abruptamente, às vezes de forma brutal, mas o que fizemos com amor continuará a ser feito.

Nunca faltam mãos para os bons bastões.