Muito patriota deve estar até hoje às voltas com a recuperação das bolhas esculpidas pelo All Star durante a passeata de domingo, sobretudo quem se arriscou nos passos daquele axé cívico, cuja coreografia foi ensinada num tutorial bem fofo pelas redes sociais. Os caras estão empenhados em derrubar o governo, mas eu sinto ganas de apertar-lhes as bochechas. Achei bem bonitinha, aquela dança. Fui dormir com o refrão na cabeça.

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Bem, como não tenho mais a energia que me consagrou como o Baryshnikov do Carnaval de Laguna nos anos 90, tampouco ingenuidade para me jogar em movimento de oposição camuflado de luta pela moralidade, fiquei em casa. Mas não sou preguiçoso. Estou à caça de uma causa.

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E julgo ter encontrado. Se não me faltar habilidade para costurar a aliança imaginada, teremos um quadro de reaproximação política. Falo do meu amigo Cao Hering, com quem rompi intelectualmente muito mais por razões de humor do que ideológicas. Cao foi o fundador da direita festiva, debochava da autoproclamada santidade dos comunistas com rara inteligência. Dizia coisas capazes de derrubar a carranca do mais disciplinado militante do PSTU.

Certa manhã de outono, lembro disto porque o mormaço já nos poupava, Cao me revelou ter recebido, em resposta a mais um artigo malcriado contra Lula, o email de uma vereadora do PT. Escreveu ela, possivelmente bufando: “Quem veio de uma família acostumada a tratar operário a pão e água, deveria se calar”. Fiquei chateado pelo insulto a meu amigo. Até porque sou Cardoso e, pelo menos entre meus parentes mais próximos, todos sustentam os filhos com recursos próprios. Famílias são heterogêneas, em resumo.

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Insuflei o Cao a responder, e ele, como um Chico Buarque falando de Cuba sob a brisa do Leblon, só ria. No dia 31 de dezembro de 2010, último dia do mandato de Lula, saiu-se com esta: “Desmonte esse circo mambembe, a lona rota, o palco em desnível, leve consigo os artistas decadentes, os animais sem licença, os tratadores servis, os áulicos oportunistas e dê chance a esse respeitável e desavisado público a se ver livre dessa hipnose chinfrim, das palhaçadas sem graça, das mágicas previsíveis.”

Morro de saudade deste Cao astuto, já disse para ele. Hoje, talvez saturado por anos deste petismo destruidor de caixa e ilusões, ele por vezes se assemelha a cientistas sociais de Feicebúqui, este tipo repugnante que, à esquerda e à direita, nos polui o pensamento com obviedades. Mas agora estamos em vias de recompor a base de apoio mútuo, eu e o Cao.

Passarei a lutar inclementemente contra quem corromper a regra da vírgula do vocativo. Virarei oposição automática desses agressores covardes. Se o cara escrever “Fora Lula”, sem vírgula, vestirei um boné do MST e comerei pão com mortadela. Se alguém disser “Não passarão golpistas”, abro voto no Bolsonaro. Enfim, já sei identificar meus inimigos.

Tenho certeza que o Cao se alistará nessas fileiras.