Nove mil anos antes de Cristo, o homem deixou de vagar pelo planeta atrás de caça, frutos e vegetais e se fixou. Deixou de ser nômade, virou um sedentário. Se você hoje está aí suando para honrar as promessas de Ano-Novo, tentando derreter a barriga esculpida com preguiça, trate de culpar a turma do neolítico.

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Por vezes me sinto ainda preso em algum lugar desta pré-história distante. Se algo tenho feito com obstinação ultimamente, é ceder ao nomadismo. Não por ansiedade. Tampouco me vejo perdido, tentando achar um lugar no mundo, como se o mundo fosse capaz de preencher o vazio da alma. Simplesmente atendo ligações de telefone. Algumas me estimulam a fazer outra ligação, para a empresa de mudança. Afinal, como qualquer proletário, tudo o que tenho para vender é minha mão de obra.

O clã Torres Cardoso, uma sociedade que os antropologos do futuro definirão com matriarcal-nômade, movimentou-se cinco vezes em 15 anos. Dá uma média de três anos para cada lar. Soa como um desprendimento. De fato, há uma leveza nas vidas que não se deixam soterrar por quinquilharias. É libertador estar permanentemente oxigenado para o movimento. O que não quer dizer, em hipótese alguma, que isto não seja doloroso.

É estranha a capacidade humana de conferir uma alma aos lugares. Todo o universo de coisas inanimadas que circunda a nossa rotina assume a forma de um corpo, exuberante em vida. Nossa casa passa a ser alguém. Quanto um lugar assim se desfaz, ainda que voluntariamente, por mais excitante que seja a vida nova que nos espera, encaramos uma morte. O que estava lá, organizado, numa ordem familiar e íntima, não mais está. Resta um luto.

Tenho, por exemplo, saudade do jeito como a luz do entardecer se derramava sobre a mesa da churrasqueira, lá na minha casa da Itoupava Norte. Por várias vezes testemunhei o dia se esvair com o olhar depositado naquela mesa. A mesa nos seguiu, está conosco, mas a luminosidade do poente ficou, por trás dos morros. Aquele conjunto morreu.

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A cada mudança, nos resta uma morte geográfica para lidar. A dor varia, ao sabor das intensidades vividas na casa. Mas nunca é branda. Noite dessas, vi uma lágrima pesadíssima correr pelo rosto do meu caçula. Estávamos sentados no primeiro sofá comprado por nós, numa loja da Rua Paris, que já amparou nádegas cansadas em quatro endereços. Trata-se de uma peça de estimação, calejada pelo tempo.

– Sento aqui, fecho os olhos e sinto o nosso apartamento de São Paulo – me disse, para justificar o choro dolorido.

Um homem com alguém para amar jamais se movimenta por si mesmo. Sempre se mexe pensando nos amores que o cercam. Contudo, estes mesmos amores me levam a refletir sobre a importância de, algum dia, sair do neolítico. Até porque a humanidade já testou um jeito mais simples de viver, sem carregar tantos lutos.