Estávamos num lusco-fusco porque o domingo já se ia, mas a expressão no rosto dele ficou claramente gravada em mim. O semblante erguido com esforço para camuflar o sofrimento físico foi desabando conforme os lábios ensaiavam tremer. Em seguida, veio o choro soluçante, alimentado pela dor que, em vez de retroceder, se agigantava até o insuportável.

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Sou pai há 16 anos, mas desconfio que uma vida inteira seja incapaz de nos ensinar a agir com serenidade diante da dor de um filho. É algo que cria em nós um sentimento de urgência tão inflamado que a razão desaparece, assim como qualquer traço de inteligência, e o império dos instintos se impõe.

Ao caso em questão, somava-se a culpa. Fora eu que, segundos antes, praticante fervoroso de atos automáticos imprudentes, fechei a porta do carro logo ao acomodar as nádegas no banco do motorista. Faço isto diariamente. Seria inocente não estivesse meu caçula na trajetória.

Se fosse dado à fé, rogaria aos céus por ter puxado a porta com a máxima parcimônia possível a um homem do meu tamanho, porque a quina atingiu um ponto da cabeça bem acima da nuca do meu menino. Um afundamento leve, sem sangramento, ficou latejando de forma crescente debaixo do seu cabelo delicadamente cheiroso.

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Corajoso, ele ainda caminhou firme até o banco de trás, onde percebi a gravidade da coisa pela expressão do rosto que narrei ali acima e jamais esquecerei. Abracei-o, sem saber se aquilo confortava ou asfixiava. Segui abraçando-o, até ceder lugar à mãe nesse revezamento de angústias. Ainda aquecido pelo calor do corpinho de 12 anos, lastimei que toda aquela dor não tivesse se transferido para mim por contato, feito um vírus da gripe.

E aí mora a crueldade da dor: ela é pessoal e intransferível. Logicamente, sai menos penoso encará-la cercado de quem nos ama, tendo o afeto como placebo de analgésico. Mas o enfrentamento é e sempre será um ato de extrema solidão. Como pai, me assusta chegar a tão crua conclusão.

Talvez a percepção deste isolamento fique mais evidente quando os nervos reagem a um estímulo externo, emitindo mensagens ao cérebro, desencadeando a dor clássica. A estrada bioquímica, embora erguida com devoção comovente durante milênios de evolução, permite leituras lineares. Feriu, doeu.

E quando a dor brota da alma, sem origem racionalmente identificável? Ah, nestes casos, nos sentimos impelidos a transferi-la, com espetáculos miseráveis de insegurança e covardia.

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Recito com periodicidade irritante um verso de Ferreira Gullar que me encanta: ¿escrever é jogar sobre os outros a nossa dor¿. Mas não é preciso habilidades com a pena para recorrer a tal expediente. Falar sempre alivia o sofrimento, e os terapeutas, cujo sustento emana dos tímpanos, estão aí para comprovar a lógica cientificamente. Não advogo o silêncio, aliás. Somos a única raça dotada de solidariedade e seria um desperdício biológico negar a publicidade de nossas tristezas a quem nos ama. Fingir que elas inexistem, então, é mais doentio ainda.

Só considero inútil a tentativa de transferência das dores existenciais pela vida da palavra rude, do gesto mesquinho, da tentativa de esvaziamento das conquistas alheias, como se a tristeza do outro curasse a nossa. O desespero emocional não nos autoriza a ser menos humanos. Quando a alma turva, convém enfrentar a dor com a dignidade do meu Olavo.