Sou uma alma empobrecida porque, ao contrário das pessoas com fé, não consigo atribuir a Deus coisas essencialmente humanas. Falo isto sem intenções provocativas, até meio desiludido. Invejo quem encontra conforto no sobrenatural. Talvez eu dê importância demais às certezas para enxergá-Lo por aí, em Sua alardeada onipresença.
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Voltei a chafurdar neste limbo entre a crença e o ateísmo numa visita à Catedral de Brasília. Apesar desta dureza de espírito, frequento igrejas por amor à arquitetura e à quietude, duas dessas formulações humanas comumente creditadas ao divino. Pois o templo concebido pelo ateu Oscar Niemeyer tem uma nervosidade incomum.
No entorno, há uma rotação acelerada típica do turismo, que em nada contribui para a introspecção religiosa. Ambulantes berram promoções de esculturas em pedra sabão e água mineral. Uma idosa cega de voz aguda implora por moedas. O corpo freme e os tímpanos zumbem pelo esforço de se chegar até ali, na porta da Catedral da Brasília.
Comigo, apesar da falta de pendores para a fé, um sentimento religioso se forma quando sinto a luz do Cerrado coada pelos vitrais de Marianne Peretti. Artista plástica franco-brasileira, Marianne foi a única mulher a integrar a equipe de Niemeyer na construção da capital. Estampou a delicadeza de seus traços também na capela do Palácio do Jaburu, no Superior Tribunal de Justiça e na Câmara dos Deputados.
Mas, na catedral de Brasília, encontrou aquele que seria o maior desafio da carreira. O projeto foi desenhado à mão, em tamanho real, no piso do Ginásio Nilson Nelson. Uma vez acoplado às estruturas curvilíneas projetadas por Niemeyer, o vitral passou a sofrer com a oscilação inclemente da temperatura do Planalto Central. Houve quebra espontânea de peças. Na beira dos 90 anos, de Recife, onde vive, Marianne deu a bênção ao restauro artesanal.
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O trabalho dela, de Niemeyer, dos candangos que suaram para tirá-los do papel, tudo ali, feito por gente de carne e osso, cria uma atmosfera divinal no interior da Catedral de Brasília. Estava ali, absorvendo a beleza, quando, sem querer, capto um diálogo revelador.
– Não entendo como a Sabrina não se interessa por arte – estranhava uma senhora que estava ajoelhada no banco da frente.
Quando consegui divisar seu rosto, parecia profundamente emocionada. Os olhos estavam umedecidos, a respiração saía falha e as bochechas tinham um rubor que vinha de dentro, e não do mormaço de Brasília.
– Talvez ela esteja cansada – dissuadiu a interlocutora, tentando contemporizar.
Seguiu-se então uma conversa que, por pruridos morais, não espichei o ouvido para escutar. Não pude deixar de reparar, contudo, que nem a paz emanada da formosura da Catedral de Brasília, refletida fisicamente no corpo daquela mulher, foi capaz de amainar os dissabores de uma viagem em bando, com gente de interesses não necessariamente compartilhados.
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Se eu não fosse aquele cretino descrito lá no primeiro parágrafo, diria que foi um recado de Deus. Como não me dou tanta importância assim, e tudo se passou entre a Sabrina e a senhora ajoelhada, fico com a metáfora. A vida é como uma viagem: fugaz e intragável quando passamos tempo demais com quem não temos afinidade.