Vinha caminhando a passos sem qualquer litígio com o relógio, aspirando o ar fresco da manhã, entretido em podcasts para nutrir conversas de elevador, quando o avistei. Estava com os cabelos grisalhos revoltos, ao volante de um carro com luzes de alerta acionadas, ali, estacionado no meio da quadra. No colo, restava aberto um mapa de ruas que os camelôs chamam de GPS de pobre. No banco do lado, uma mulher também na casa dos 60 e poucos anos se juntava àquela tentativa, até então vã, de decifrar um paradeiro.
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Aliás, me permitam um parênteses. Quando flagro gente de cabelo grisalho enfrentando contratempos tecnológicos, fico pensando do que serei excluído daqui a poucos anos, se tiver a sorte de viver tanto. Porque a tecnologia, ao exigir uma obstinação frenética para o descartável, vai formando um batalhão de excluídos ao qual, fatalmente, nos alistaremos. Fecha parênteses.
Não sei ao certo o que passava no meu podcast, se não me engano era uma entrevista com o Gregorio Duvivier tentado parecer mais maduro do que é. Talvez pela chatice do que me entrava pelos tímpanos, consegui interpretar uma leitura labial sumária. Saquei os fones do ouvido em tempo de escutar uma súplica.
– Moço, como chegamos à rádio sertaneja, na T-37?
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Soergui-me de modo a mirar o horizonte. Nesta posição ereta, fui gastando minha miserável matemática que a cidade, talhada há pouco mais de oito décadas numa gleba poeirenta, transformara em ciência inexata. As ruas dela são predominantemente designadas por números, em alguns casos acrescidos por letras, tal qual um jogo de batalha naval. Mas isto está longe de ser um conforto. O sujeito vai caminhando e vê que a rua T-36 é sucedida pela T-37. Confiante, abre um sorriso e avança até a próxima esquina quando daria de cara com a? T-38? Errado. Ali é a T-4.
Portanto, entendia a aflição do casal. Mas, por acaso, como dito antes, a T-37 fica ao lado da T-36. Então, com a autoridade de um nativo, tratei de tirá-los da escuridão e apontar o endereço redentor da rádio sertaneja, onde, imagino, um brinde os aguardava. Bastava voltar o carro uns cinco metros e pegar a mão certa para o destino pretendido.
– Recomendo uma rezinha, pois, subindo aqui, nesta rua, e dobrando a próxima à direta, vocês passarão pela esquina da Rua T-37.
Os olhos de ambos, percebo só agora, pareciam confusos, com dificuldade de se fixar nos meus. Mas julguei ter sido didático. Reacoplei os fones no ouvido e segui a caminhada, peito estufado, satisfeito pela ação cristã do dia. Uns passos adiante, quando o Gregório já havia retomado a ladainha, vi o carro do casal rumando em velocidade inalcançável por um grito, no sentido contrário ao que eu havia indicado. Pior: cidades jovens foram concebidas já sob a regência da indústria automobilística, ou seja, na avenida onde desembocariam, o próximo retorno só se anunciaria na cidade vizinha. Experimentei uma frustração colossal.
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Não só porque o casal corria o risco de perder o brinde da rádio sertaneja, mas por me dar conta da nossa dificuldade de ouvir quando estamos emocionalmente fragilizados, perdidos, desnorteados. Não tenho problema de ser um excluído digital, mas adoraria que a idade me trouxesse a sabedoria para evitar a surdez provocada pelo desespero.
Soube numa esquina que isto já é esperar demais da vida.