Ando metido num dilema ético profundo. Tudo porque notei certa oscilação no tom do cumprimento do porteiro da firma. Se chego perto das 8 da manhã, ouço um “bom dia” mais efusivo, acompanhado de um sorriso aberto, capaz de deixar o hálito escapar num raio de dois metros. O perímetro é uma suposição, não me aproximo tanto do sujeito, mas, dada a sinceridade do movimento de seus lábios, creio ser cientificamente possível captar seus cheiros interiores desta distância. É reconfortante ver um homem rindo assim.

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Porém, se me detenho mais tempo na cama e apareço no trabalho depois das 10, recebo uma resposta meio automática, quase abafada, como se as palavras arranhassem a garganta ao sair. Entediado, o sujeito tamborila o balcão com os dedos de uma mão, enquanto apoia a cabeça na outra. Não posso atribuir esta metamorfose linearmente às alterações de humor que nos assaltam, vindas de diferentes origens. Há algo ali mais relacionado ao relógio do que a qualquer variação bioquímica ou hormonal.

Como a firma emprega mais de 500 almas, uma tese passou a ganhar sentido na minha cabeça. Creio que o porteiro vai se cansando de dizer “bom dia”. No alvorecer da jornada, insuflado por uma noite de sono reparador e uma fumegante xícara de café preto, acolhe a todos com ardor. Duas horas depois, seria humanamente impossível manter idêntico entusiasmo. O cara fica exaurido de tanto ser legal.

Aí mora meu dilema ético profundo, confessado lá na primeira frase deste texto. Se eu estou realmente interessado no bem-estar do meu colega, se eu sinceramente pretendo que ele tenha um bom dia, talvez eu deva negar-lhe o cumprimento.

Dói ser conduzido inapelavelmente a uma conclusão desta natureza, mas, na segunda metade da manhã, me soa mais respeitoso cruzar o balcão da recepção como se ali só houvesse coisas inanimadas ou incapazes de retribuir verbalmente um afeto, como uma samambaia ou uma violeta, por exemplo. Mas se meu silêncio for interpretado como uma grosseria? Deus, como é difícil esta tarefa que convencionou-se chamar de vida.

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De qualquer forma, minhas dores vão jogando luz sobre nossa índole autocentrada, sobre esta capacidade infinita que temos de nos colocar em primeira perspectiva, antes de todas as outras pessoas. É assim no caixa do supermercado, é assim no trânsito. Nossa urgência sempre parece maior do que a do outro, porque é mais confortável ignorar este outro.

David Foster Wallace, um escritor de quem eu gosto muito, já dizia que a gente nasce com este chip do egoísmo, e dá um suadouro danado lutar contra ele. Dá mesmo. Mas esta manhã, enquanto você caridosamente conclui a leitura destas linhas, terei negado o cumprimento ao porteiro. Faço isto porque, por vezes, a ausência é uma contundente expressão de afeto. Espero que ele, meu estimado colega, entenda assim.