O ar consiste numa mistura de gases que graças à força da gravidade, ou a Deus, como preferem alguns, se encontram submetidos ao planeta. Se não houvesse a retenção deste coquetel de nitrogênio, oxigênio, vapor de água, ozônio e outros fluídos fartamente mencionados no Gúgou, eu não estaria aqui escrevendo, tampouco vocês aí, lendo. Não resta dúvida, pois, do poder opulento deste companheiro que nos entra pelo nariz e sai pela boca – não necessariamente nesta ordem, para desespero de médicos e professores de ioga.
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Sou um sujeito perfeitamente recolhido à insignificância que me foi delegada pelo universo. Não sei se foi sorte ou azar, ainda me detenho neste dilema. Mas as circunstâncias especialíssimas que permitiram o surgimento da vida no meio deste cosmos em expansão, com bolas incandescentes atraindo massas arredondadas giratórias, tornam tudo muito instável. Saber que o sol tem prazo de validade, que o ar pode se dissipar independentemente do uso de carro ou do consumo de carne vermelha, tudo me alivia o peso da existência burguesa.
O que me rouba a paz desta confortável resignação é o uso do ar para fins de linguagem, porque, quando o ar é utilizado como meio de expressão, normalmente se transforma em portador de azedumes contagiosos. Quando alguém suga o ar profundamente, inflando os pulmões com destemor, para em seguida expeli-lo fazendo vibrar os lábios, uma redoma de baixo astral se estabelece na esteira deste som maligno.
O sujeito que bufa, mesmo que por motivos aparentemente legítimos, é um sabotador de ambientes. Trata-se de um sádico que, incapaz de suportar infelicidades estruturais ou momentâneas, pulveriza sofrimentos umedecidos de perdigotos sobre os demais. Jamais testemunhei nada harmônico ser construído a partir da impaciência expressada por lábios vibrantes.
Aliás, a bufada é uma das mais tolas demonstrações de egoísmo. Porque quem recorre a tal expediente sabe que vai chatear os outros sem colher benefícios para si mesmo. Bufa por um instante de despressurização quase narcótico.
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Nesta longa estrada da vida, como diziam os poetas sertanejos de antigamente, tive o desprazer de cruzar com muitos praticantes destes discursos respiratórios não verbais. Houve ocasiões em que, diante da minha explícita má vontade com bufadores seriais, gente de alma mais elevada tentou me serenar. Em algumas firmas, inclusive, paira o conceito velado de que o sujeito “bufa, mas faz”, ou seja, a expressão de impaciência através do ar é abrandada como um verniz de genialidade.
Como medíocre que sou, posso apenas imaginar o aborrecimento de quem assimila rapidamente aquilo que os outros custam a entender. Mas, mesmo sabendo desta chateação que só assiste aos de alto QI, vos digo: se Einstein tivesse bufado dia e noite enquanto desenvolvia a teoria da relatividade geral, o efeito fotoelétrico e a formulação matemática do movimento browniano, teria anulado os efeitos da própria ciência. A humanidade teria saído no vermelho.
Recomendo aos bufantes que se recolham à insignificância delegada pelo universo e que busquem a paz na resignação. Não vai mudar nada no cosmos em expansão, mas vai deixar mais respirável o ambiente para todos aqueles que, por azar, lhe orbitam.