Há uma queda d?água nos confins de Goiás cuja literalidade do nome só vim a perceber depois de passar por uma experiência pessoal dramática. Chama-se Cachoeira do Desengano. Fica a 60 quilômetros por estrada de terra do povoado mais próximo. Quem gosta mais do carro do que de si não deve jamais ir lá.

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Nesta tal cachoeira, estive desenganado por eternos 20 minutos, agora, na Sexta-Feira Santa. Neste dia de reflexão para os cristãos, tive consciência do meu desequilíbrio físico e emocional. Delgado como a cintura do editor desta página, o Pedro Machado, o rio da Cachoeira do Desengano corre numa região levemente acidentada, ladeado pela mata sobrevivente no Cerrado. A margem pedregosa parece uma escadaria feita por algum arquiteto com dislexia. É por ali que se acessa a refrescante queda d?água.

O último degrau natural pedra abaixo fica mais ou menos na altura do queixo para um sujeito de 1,80 metro. Nem a Ana Hickmann dispõe de perna o suficiente para firmar o passo derradeiro antes do rio. É preciso saltar.

Copiei a técnica da Mônica e dos meninos, que se iam à frente: sentei à beira do último degrau, dei um leve impulso com as palmas das mãos e amorteci a queda com os pés. Banho de cachoeira ativa o mecanismo de recompensa do cérebro, feito um narcótico. Até porque o sujeito passa tanto trabalho no trajeto que fica praticamente obrigado a conferir propriedades quase transcendentais ao mergulho gelado. Assim foi conosco, num transe que durou perto de duas horas.

Quando a temperatura fora da água se assemelhou à de Vênus, entramos num dilema familiar: murchar imerso, arder sob o sol inclemente do Centro-Oeste ou ir embora. Optamos pela terceira alternativa.

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O problema é que o primeiro obstáculo pedregoso da volta, se vocês estão lembrados, fica na altura do queixo de um sujeito de 1,80 metro. Leves, a Mônica e os meninos certamente teriam impulsão para escalar por si mesmos. Mas como sou homem paternal e de pretensões cavalheirescas, ofereci-me para erguê-los. Cumprida a tarefa, me vi sozinho na garganta da cachoeira.

Tentei um pulinho. Não deu. Tentei mais cinco. Fracassei. Inspecionei reentrâncias na rocha. Nada. Não havia dúvida: eu estava entalado na boca da cachoeira.

Tendo a família como plateia do meu desespero, sai andando pela margem do rio. O terreno era tão irregular que senti tendões, cartilagens e músculos compenetrados no equilíbrio, depois de uma inércia de 43 anos. A lágrima prestes a despencar não me impediu de avistar uma árvore com raiz opulenta, onde me agarrei com a sofreguidão de um náufrago a uma boia. Fui-me arrastando pedra acima, em movimentos miseravelmente sabotados pelo musgo. Uma sinfonia de gemidos depois, o que restou de mim chegara finalmente ao nível onde já estavam a Mônica e os meninos.

Na trilha da mata até eles, uma constatação terminou de arruinar minha reputação. Havia dezenas de latas de cerveja jogadas na vegetação. Bêbados fazem, bebericando, o que eu acabara de fazer na iminência de uma convulsão nervosa.

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Por que se bebe num lugar ermo cuja beleza embriaga é tema para outra conversa. O que me aturde é saber que sou integralmente mais desequilibrado do que os porcalhões da Cachoeira do Desengano.