Procuro ter tato ao dizer isto, porque uma interpretação apressada pode arruinar uma reputação de progressista, que é o que todos nós que escrevemos em jornal almejamos. Mas há algo cristalino que precisa ser colocado: as pessoas vão abrindo mão de suas liberdades porque ser livre dá um trabalho danado. Um sujeito livre tem direito a escolha, e a escolha, amigos, é um processo solitário e dilacerante. Não estranho que tanta gente flerte com o autoritarismo, trocando a escolha por uma ordem. Assim não precisamos assumir responsabilidade sobre a nossa vida. O fracasso pode ser terceirizado, e isto gera um conforto emocional muito sedutor. Fui me metendo nestes pensamentos sobre o fardo das escolhas ao pegar o metrô em São Paulo. Ali, onde o passageiro pode trocar de trem sem pagar nova passagem, há um vaivém frenético. Mas o deslocamento humano poderia ser bem menos estúpido e claustrofóbico, não fosse um efeito manada. Explico. Quando se sai do trem, há uma escada conduzindo aos andares superiores. Até mesmo nos horários de pico, é bastante confortável andar por ali. Resta vazia para os padrões paulistanos. O fenômeno se explica no fato de, 10 metros adiante, haver uma escada rolante sempre apinhada, diante da qual as pessoas fazem fila. Não sei se é preguiça ou cansaço, mas perde-se tempo demais quando abdicamos do poder de escolha. Não tenho vocação para Márcio Atalla, portanto, não me tenham por advogado da queima de calorias. Meu ponto é que as escolhas não necessariamente são boas ou más. São o que são, geradoras de herança. Se uma camada de gordura vai se formar na minha cintura, é aceitável desde que a opção pela escada rolante seja deliberada, refletida. Mas o preço parece caro quando saímos imitando o outro, encolhendo as possibilidades. É tristíssimo quando a gente escolhe sem saber que está escolhendo.
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Há uma reação, não me espanta que predominantemente de homens brancos e heterossexuais, contra a defesa ampla e aberta do aborto como ato de liberdade da mulher. Críticos dizem que a campanha “Meu corpo, minhas regras” reflete o individualismo sobre o qual depositamos nossa esperança de felicidade, com resultados questionáveis até aqui. Bem, não sou a favor do aborto, jamais faria, mas simpatizo com toda a defesa da escolha numa sociedade que teme a própria liberdade. Grosso modo, sou contra o aborto, mas a favor da possibilidade legal. A decisão de interromper uma gravidez é psicologicamente devastadora, posso imaginar. Portanto, não será por covardia que criticaremos as meninas que lutam para tomar as rédeas do próprio corpo. Trata-se de um desprendimento muito mais digno do que pedir a volta dos milicos, da censura e tantas outras soluções castradoras da liberdade, simplesmente para passar bem, sem ter de escolher coisa nenhuma. Nem todo mundo opta pela escada rolante, em resumo. Por fim, precisamos ser honestos: se homem parisse, o direito ao aborto já estaria aprovado há muito tempo.