Neste esforço vitalício para que minha cintura se pareça menos com a Linha do Equador, me inscrevi para uma corrida. Cinco quilômetros, coisa simples. Mas não foi só o acanhamento do trajeto que me inspirou.

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Fui dispensado da taxa de inscrição porque, dois meses antes, me submeti ao exame de PSA, cuja mensagem emanada do sangue antecipa risco do câncer de próstata, com autoridade similar ao indicador do urologista. Estou livre do toque e das tempestades celulares, por ora.

Impossível desfrutar desta benevolência sem lembrar do Osvaldão. O cara chama a mulher com quem está casado há quatro décadas de Nêga. Se houvesse espaço para coerência no mundo, um apelido no aumentativo jamais colaria num sujeito capaz destas doçuras.

A percepção privilegiada das coisas também faz do Osvaldão um narrador exuberante. Numa manhã mormacenta deste verão, percebi sua aproximação lenta, concluída com uma confidência sussurrante, a uns 10 centímetros do meu tímpano.

Ontem entrei no dedo.

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Levei bons segundos até lembrar que o Osvaldão passou dos 60 e, nesta faixa etária, homens sensatos submetem a próstata ao toque científico de um médico, inclusive com alguma regularidade. Osvaldão foi meio relapso e, pela primeira vez, acolhera nas próprias entranhas a parte de um corpo estranho, pontiagudo e vivo.

Só foi lá, ao consultório, por insistência da Nêga. Ok, tudo ali girava em torno de propósitos estritamente medicinais, para fins de diagnóstico, mas detalhes da experiência foram realçados.

Por exemplo: Osvaldão não mirou os olhos do urologista enquanto lhe apertava a mão. Canalizou todos os demais sentidos para o tato, que investigava obstinadamente a espessura do dedo indicador do médico.

Não houve tempo para uma conclusão anatômica definitiva. No consultório, quando identificou a superfície onde ampararia o corpo na iminência de uma invasão, buscou indícios de resistência física, como lençóis revoltos ou sangue nas paredes. O fracasso desta inspeção ocular não aliviou a opressão emocional.

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Uns dias depois daquela manhã mormacenta de confidências, o cara revelou, agora de forma menos comedida, que “entrara no dedo” outra vez. Um segundo urologista, visitado por insistência da Nêga, insatisfeito com o resultado, recomendou novo e imediato exame de toque.

Conduzido a uma sala vestindo um avental sumário, Osvaldão se desconsolou com a expressão sorridente dos homens que ali esperavam. E sofreu em profusão, como sofrem os sensíveis, enquanto se preparava para mais um dedilhar científico do médico.

Não sei se fui bom ouvinte, mas, nestes relatos, ficou evidente a ausência de sofrimento sobre o toque em si. Não havia menção a dores. Tampouco notei enfraquecimento das mais caras crenças de macho do Osvaldão. Todo desespero se resumia à expectativa de uma penetração, que se mostrou sem força para justificar qualquer registro verbal.

Em Crime e Castigo, Dostoiévski ensinou: “O sofrimento sempre acompanha uma inteligência elevada e um coração profundo.” Osvaldão é um cara sensível, um Raskolnikov incapaz de matar velhas agiotas.

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Seguirei me inscrevendo para provas de corrida, livre de culpas maiores. Que leve a primeira dedada quem nunca sofreu por antecipação.