– Vâmo, aluno! Atira!

Não guardo mágoa do oficial, que, numa instituição onde bons e maus profissionais têm progressões de carreiras idênticas, sem qualquer indício da tão milagrosa meritocracia, deve ser hoje um milico de três estrelas douradas no ombro. Estava apenas fazendo o seu trabalho de me ensinar tiro e poupando o tempo do Exército. Tampouco, salvo se fosse paranormal, o tenente teria como saber o que me travava de fuzil em punho. Na verdade, eu fantasiava humanos no alvo, e isto me congelava.

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Pouco mais de dois anos antes, no meu aniversário de 16 anos, numa sexta-feira 13 como a última, quando também aniversariei (fiz 44, mas não espalhem), fui vítima de assalto. Numa reação juvenil e instintiva, corri do ladrão. O cara atirou.

O desfecho, salvo as quase três décadas de gracejos por carregar um projétil no músculo das nádegas, foi favorável para mim. Cá estou, gordo e bonito. Bem, mas o que isto tem a ver com a minha aula de fuzil? Tudo. Foi ali, deitado no estande de tiro do CPOR de Porto Alegre, que percebi minha ausência de vocação para matar.

Notei que, por mais rancor que pudesse ter contra o marginal disposto a abreviar minha vida, um mau caráter infeliz que nem sei quem é, não conseguiria matá-lo. Porque me recuso a descer ao estilo de vida daquele ser humano moralmente obsceno, que anda armado, para preservar o meu.

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Fico triste que a elevação do espírito, desgraçadamente, tenha contaminado a polarização política que vivemos. O sujeito se alista a um pacote ideológico onde está a cruzada contra a arte (a pretexto de proteger as crianças), a reafirmação do orgulho hétero e, porque todo macho precisa, o porte de armas.

Não há como professar uma dessas ideias sem trazer as outras a reboque. Como estes sujeitos estão aí, organizados em milícias digitais e salivando por tutelar a vida alheia, estou pensando em comprar uma arma para resolver as coisas por mim mesmo, caso o mundo que eles sonhem seja instaurado. O nada que advém da morte me parece muito mais excitante.

Aliás, a cada sujeito morto ou preso por mau uso da arma, os arautos do armamento da população civil deveriam ir aos cemitérios ou aos presídios, consolar famílias e atiradores com o relativismo moral ao qual estão habituados a argumentar. O problema é que eles são bons de rede social, e não de vida real.

De minha parte, assumindo o risco da ingenuidade, sempre considerarei a arma em casa como um atestado de fracasso da vida em sociedade. É uma aposta na morte como solução.

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***

Ah, depois de ter o capacete esmurrado pelo tenente, atirei. E dei outras dezenas de tiros ao longo daquele ano. Saí-me um atirador medíocre. Talvez porque fiz aquilo por força da lei, do serviço militar obrigatório, jamais por prazer irrigado de testosterona.

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