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Um fenômeno em particular me salta aos olhos. Apesar de o desejo por pessoas do mesmo sexo ser uma inclinação essencialmente humana, presente em um em cada 10 de nós, a humanidade nunca deixou de ser hostil com os gays. Mas creio que agora, com a tropa de crentes que mais fala do que reza à solta nas redes sociais, o cenário seja bem mais asfixiante. Vivemos uma espécie de Idade Média digital, tal a intromissão generalizada no comportamento individual.

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Pois bem.

Estava domingo desses metido num churrasco, me refestelando num lombo de porco sumarento, cuja umidade se acentuava com o gotejamento oriundo de limões. A vida ensina, porém, que uma mesa farta atrai gente demais, e gente demais à mesa amplia a chance de haver incompatibilidade entre os comensais.

Foi o que ocorreu com esta turma, que, lá pelas tantas, pareceu particularmente incomodada com os apetites sexuais alheios. Ecoou dali um festival de frases preconceituosas, algumas sob influência religiosa, outras sem aquela risadinha cínica para amenizar a sordidez.

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Infelizmente, em tempos de discursos ausentes de refinamento, o ouvido vai aprendendo a filtrar o esgoto verbal. Com uma dose de paciência tibetana, sobrevive-se a um churrasco sem discutir com quem não vale uma conversa.

O estranhamento que me levou a estas linhas veio quando, diante da insistência para encher meu copo de cerveja, cachaça e outras derivações etílicas, me revelei um abstêmio. Deixei de beber meses atrás, após uma operação matemática simples: somei, subtraí e me sobraram muito mais motivos para viver sem álcool. Não vem ao caso enumerá-los aqui, até porque me detive em razões estritamente pessoais que não se aplicam como doutrina geral. Mas ao observar aqueles homens sôfregos por mais um gole, me senti num movimento de contracultura.

Houve ocasião em que poetas buscavam no álcool o refúgio de um mundo cuja impossibilidade só servia para alimentar versos. A bebida era uma forma de manter a sobriedade. Hoje em dia, porém, do jeito que se bebe, não há nada de questionador. Parecemos todos regidos pelo poema neossertanejo, aquele do“beber, cair e levantar”. A tropa se embriaga às largas enquanto faz pouco ou nenhum esforço para pensar diferente de nossos avós. Basta um churrasquinho com gente demais para nos darmos conta deste vazio.

Uma sociedade que castra de um lado e se anestesia de outro, não merece outra coisa a não ser rebeldia. Abandonemos os copos como expressão legítima de uma vida louca, porque a lucidez deles não me entusiasma.

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