Se Darwin está errado, o Criador deveria responder a um processo por imperícia no conselho de engenharia e arquitetura. Como pôde Ele projetar a língua mais veloz que o cérebro? As frases que nos escorrem pelos lábios, livres dos filtros da razão, respondem por metade dos constrangimentos de uma vida. Ah, não contabilizei nesta estatística a eloquência derivada do álcool, pois seria superestimar a rapidez da língua. Eu mesmo, quando sóbrio, já senti os efeitos nocivos desta degradante imperfeição do corpo humano. E dos dois lados do balcão.
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Certa manhã de inverno dos anos 2000, chego a um presídio no interior do Rio Grande do Sul. Missão: noticiar uma fábrica de chocolate administrada por três apenados lá enclausurados. Reportagem um tanto simpática ao poder que, quando a coisa não funciona, nem sempre é assim, tão receptivo, mas fui com o maior orgulho pelos presidiários.
Sobrevivo ao frio mesmo sem a jaqueta, retida pela segurança. De bloco e caneta em punho, ouço portas de ferro fechando atrás de mim. Numa sala acanhada, com azulejos se descolando da parede, presos se perfilam diante de panelas e sacos de chocolate em pó. Orgulhosos, me ofertam uma barra. Debelo a gordura hidrogenada presa ao céu da boca e pergunto aos quatro homens que me recepcionavam:
– Não eram três detentos? Agora há mais um, então?
– Não! Este quarto é o diretor do presídio.
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– …
* * *
Certa tarde da primavera em Blumenau, sofro para encontrar uma vaga na Benjamim Constant. Nunca foi fácil estacionar na Escola Agrícola, Asilo e arredores. No porta-malas, pego sacos de farinha, feijão, arroz e outros mantimentos da cesta básica fornecida pelo patrão, que não seriam consumidos pela turma lá de casa. Ofegante, toco na campainha de uma creche, em cujo trabalho confio. Uma professora, ar solene, atende.
– Pois não?
– Gostaria de fazer uma doação de alimentos.
– Ah, sim, obrigada.
– De nada – disse, já me retirando, meio bufando pelo esforço carregando fardos de comida na geografia de acidentes do bairro.
Afastei-me, mas não o suficiente para impedir que uma última pergunta fosse ouvida.
– O senhor está cumprido pena alternativa?
Só então vi que estava com a barba por fazer, camiseta de brinde de algum aniversário do Santa, calção e chinelos de dedo…
* * *
Vivi essas duas situações há tantos anos e, devo confessar, ainda não me sinto seguro com as ansiedades da língua. Tinha esperança que ela se movimentasse mais elegantemente com a velhice, mas a decadência do cérebro quarentão talvez explique minhas incontinências verbais. Nesta degradação humana, sou acompanhado por milhares de jovens, adultos, idosos, todos neomilitantes de coisa nenhuma. Vou desacreditando no tempo e no ambiente como remédio para nossas tolices. As certezas se sobrepõem às evidências com enorme força.
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Bate uma tristeza, claro, mas arrefece a vergonha própria, pela gafe no presídio gaúcho, e alheia, pela creche da Escola Agrícola.