
Dizem que é coisa da idade e a tese, embora me imponha depreciações cronológicas, de alguma forma me conforta. Do contrário, teria de estar à cata de diagnóstico para as urgências repentinas reclamadas pela bexiga. Súbito, sem qualquer sinalização crescente mais sutil, sou assaltado por uma necessidade inadiável de ir ao banheiro. Não saberia precisar quando esta escravidão fisiológica me foi imposta. Certamente depois dos 40, o que empresta contorno científico às hipóteses que me são simpáticas. Não sou um homem doente, só estou às voltas com a decadência.
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O enfrentamento desta situação ordinária, desgraçadamente, nem sempre se dá de forma digna. Tarde dessas, depois de almoçar com a lentidão de um argentino na companhia da minha mina e de uma amiga, me coloquei a flanar por ruas gentilmente sombreadas pelo casario e pelas árvores.
Um sol meio insolente, aproveitando um hiato sem o filtro do concreto e das folhas, luziu o torso dela, elegantemente exposto ao frio de julho. Fiquei com o olhar ali por longos minutos, vendo como a luz se metamorfoseava conforme as palavras lhe saíam. Há 17 invernos me nutro destas poesias que dela emanam. Sou um cara de sorte.
Levitava com o espetáculo que acabara de assistir quando, na esquina seguinte, a bexiga resolveu exercer o seu poder autocrático. Toda a leveza de um amor iluminado pelo sol se dissipou. Meu corpo arqueou-se e o cérebro passou a se ocupar de uma só função: expelir, com a máxima brevidade possível, o subproduto do trabalho renal.
Tentei esconder dela minha miserável condição. Tanto que, ao chegar ao carro, estacionado num bairro residencial algo silencioso, ainda peguei uns documentos que precisávamos assinar em conjunto, fingindo capacidade de concentração. Mas meus esforços cênicos ruíram quando destampei a caneta e, para evitar umedecimentos, comecei a movimentar as penas como se estivesse pedalando no ar, parado, em pé, sem sair do lugar.
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– Não dá mais! — confessei, num esgar de desespero.
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Após rápida leitura de contexto a partir de linguagem corporal, visto que lhe sonegava minha penúria moral nos últimos quarteirões, a guria buscou na memória recente as bases para um pragmatismo salvador da reputação do marido. Não só se lembrou da garrafinha de água com gás que vínhamos bebericando a caminho do almoço, como sugeriu que, se eu entrasse no carro, poderia atender meus desígnios fisiológicos com baixíssimo risco de indiciamento por atentado violento ao pudor.
E assim fiz, recorrendo a elasticidades remanescentes neste corpo cansado para camuflar minhas vergonhas dos olhos da multidão. Foi um esforço dispensável, pois nenhum transeunte circulou durantes aqueles segundos que me devolveram a oportunidade de voltar a viver como um ser humano integral, livre de emergências primitivas.
Conforme a serenidade se reinstalava em mim, o alívio foi cedendo espaço a um constrangimento de gênero. Por que nós, homens, mesmo quando no gozo pleno da juventude, somos tão covardes para a contenção de emergências fisiológicas? Não é só porque são anatomicamente incapazes de se socorrer numa garrafa de água mineral que as meninas se contêm.