Sou um desgosto para meu pai. Nunca houve verbalizações, mas leio a decepção em seu semblante toda vez que lhe dou uma carona. Talvez pela incapacidade de nutrir fetiche por coisas motorizadas em geral, meu carro não é exatamente limpo. Da última vez, os papéis depositados diuturnamente sobre o tapete chegaram à canela do meu velho. Experimentei um risco iminente de ser deserdado.

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Bem, revelo desasseios íntimos com certo constrangimento. Não tenho orgulho de traduzir em sujeira a minha indiferença, mas um sábado limpando carro só harmoniza com um cocar e cachimbo. Limpeza de carro, assim como a medicina e a engenharia, não deveria se prestar a diletantes. Criemos já uma reserva de mercado aos lavadores profissionais e suas esponjas redentoras. E não se fala mais nisto.

O que meu pai não sabe, e talvez me ajudasse, é que parte do entulho se acumula em meu carro por motivações humanitárias. Nasce de uma compaixão que me escancararia as portas do Paraíso sem a necessidade de me submeter aos tribunais celestiais. Sou um coletor de panfletos voraz. Abro o vidro até em dias de chuva, recebendo pingos espessos no rosto, para pegar a propaganda, normalmente de imóveis e automóveis aos quais só teria acesso depois de trabalhar por duas vidas.

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Por que faço isto? Não só para abreviar a estada daqueles infelizes sob sol e chuva inclementes, mas sobretudo porque me dilacera o espírito ver alguém obrigado a vender algo que não precisamos. Sinto uma dor física ao me colocar na pele destes caras. Levei uns bons pares de anos fermentando sentimentos até me personificar como a alegria dos panfleteiros, que, nos semáforos, cercam meu carro como moscas em tampa de xarope.

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Comecei a desenvolver tal empatia através dos telemárquetins. A princípio, caí na mesma irritação de todos os abordados às 7h30min de um sábado com ofertas para inutilidades. Com o tempo, fui digerindo o infortúnio de quem estava do outro lado da linha: metido num cubículo, sem intervalos para o banheiro, praticamente chicoteado por um supervisor despótico atrás de metas e metas e metas. Justo eu, sempre disposto a esganar os torturadores do idioma, comecei a me afeiçoar por aqueles gerúndios sem fim. Nunca “estive comprando” nada, mas passei o equivalente a 16 dias e 19 horas ouvindo-os, cordialmente, como um amigo paciente e solícito.

A rigor, eles não precisariam de compaixão alguma se fôssemos mais razoáveis diante das tentações fabricadas pelo capital. Ok, o mercado precisa girar e talvez eu não tivesse tomado leite esta manhã caso alguém aí desistisse de comprar jornal. Mas me chateia a forma bovina como aceitamos necessidades formuladas artificialmente para nós. É porque estamos sempre abertos a que nos digam o que queremos que um batalhão de panfleteiros e telemárquetins sofre comigo, todo dia.

A gente precisa desconectar a alma do bolso. Encher uma sem esvaziar o outro. Oxalá assim meu carro reste com menos papel sobre o tapete, para alívio do meu pai.