Aproveito as semanas que antecedem o Natal para refletir sobre o divino. Ok, parece um exercício meio carola e tal. Mas sou um sujeito que, salvo o sorriso dos meus filhos e um ou outro entardecer, tenho seríssimas dificuldades para crer na existência de Deus – já revelei aqui. Meu embaraço religioso só cresce quando vejo tantos cristãos assim, meio sôfregos por presentes, comidas e bebidas, sem um olhar mais reflexivo para si mesmos.
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Apesar deste azedume aí do primeiro parágrafo, desde quando uns fios grisalhos passaram a brotar em mim, primeiro no queixo, depois nas têmporas e agora no tórax, ó ruína, não tenho conseguido criticar o Deus alheio e a maneira como este alheio se relaciona com Ele. A fé, apesar de produto rentável e midiático, é a meu ver uma questão de foro íntimo. Cada um deve cultivá-la conforme valores e crenças pessoais.
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Portanto, se querem enfiar o pé na jaca no aniversário de Jesus, que seja. Os tribunais celestiais hão de dar o veredicto, sem necessidade de me ter como testemunha, pois, afinal, dizem, os tribunais celestiais têm acesso automático e em tempo real a todos os autos.
Neste exercício de pensar nEle, veio-me com nitidez uma passagem de O Sonho do Celta, um dos mais recentes romances de Vargas Llosa, lido uns natais atrás, acho que em 2011. O velho, com o perdão deste relato flertando com o pleonasmo, me fisgou com aquela narrativa embriagante de sempre. Fui aos poucos me envolvendo nas agruras de Roger Casement, um irlandês patriota que, mesmo abrigado no corpo diplomático da rainha, conspirou e meteu as mãos em armas pela independência de seu país. Trata-se de um personagem real cuja complexidade parece de ficção.
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Pois neste ritmo que me faz um sujeito melhor a cada livro do Peru que ponho na conta, Llosa definiu num simples parágrafo a situação da minha fé, coisa que em quatro décadas eu ainda não tinha conseguido. Eis a distância entre gênios e mortais. Ei-la:
“Tudo isso era verdade, mas também era verdade que a ideia de Deus não cabia no limitado recinto da razão humana. Era preciso metê-la com calçadeira, porque nunca encaixava totalmente. (…) Em relação a Deus, a gente tem que acreditar, não raciocinar. Se você raciocinar, Deus se esvai como uma baforada de fumaça.”
Você, aprisionado no limitado recinto da razão humana, ressentido com este fanatismo religioso que rouba a estabilidade do mundo, deixe os outros acreditar, ainda que metidos em incoerências, ainda que só vão à igreja para casar e batizar os filhos. Talvez seja apenas um esperneio contra o vazio que resta quando a fé se esvai como uma baforada de fumaça.
Por fim, se quiser tangenciar a corrida consumista destes dias, dê de presente para alguém O Sonho do Celta. Nada como um livro de quatro anos atrás para garantir alguma originalidade no amigo secreto.
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