Todo jornalista tem um quê de matemático frustrado. Pragueja contra a esterilidade dos números, mas se deixa submergir na superficialidade estatística. Diante de um arquivo de Excel, dispensa o contato com a realidade que presunçosamente se dispõe a retratar. Até que ela esbofeteia o rosto de quem ousou camuflá-la com algarismos.

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Comigo aconteceu no sexto pavimento de um edifício na Floriano Peixoto. O elevador para e um homem de uns 60 anos, três caixas de remédio às mãos, dá um passo à frente da porta. Percorre o andar com os olhos e, sem reconhecer a portaria, volta ao elevador, já em minha companhia.

– Vamos descer juntos – propus, para quebrar o gelo.

Talvez encorajado pela frase lacônica, virou-se. Percebi seus globos oculares avermelhados, cobertos por uma fina camada de lágrima.

– Ah, como eu queria que o meu problema fosse só o diabetes… Mas não consigo superar a desgraça que acometeu minha filha.

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– O que houve? – perguntei, constrangido por invadir dilemas familiares de terceiros.

No térreo, saltamos do elevador. Meu interlocutor responde prostrado na portaria, alheio ao vaivém de pessoas.

– A menina foi cuidar do primo recém-nascido, a pedido da mãe, que é minha sobrinha, filha de meu irmão. Não é que o pai do bebê estuprou minha filha, então virgem e com 15 anos?!?!?!

Silenciei, num mosaico de comiseração e espanto. Ele prossegue.

– Já pensei em matá-lo, mas, ao contrário dele, eu sempre soube das minhas responsabilidades.

– O senhor faz bem. A violência não levaria a nada. Esperemos a justiça – sugeri, já recomposto.

– Mas já faz 15 dias… – lamentou ao se despedir.

Caminhei na direção contrária. No terceiro passo, não resisto ao ímpeto de olhar para trás. Na calçada do Santa Isabel, aquele homem carregava a dor que nenhum estatístico no mundo seria capaz de quantificar.

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