– Em que posso servi-lo, moço?
Mantive-me em cauteloso silêncio enquanto girava o pescoço, à procura de outro cliente digno deste tratamento. Não havia dúvida: eu estava só diante do balcão do mercadinho do bairro.
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– Pois não, moço? – repetiu a menina, disfarçando a impaciência num habilidoso sorriso.
Só então, depois de detalhada inspeção, me esvaí em contentamento. Não sei ao certo quando perdi o direito a ser tratado por moço. Há alguns carnavais os balconistas se dirigem a mim por senhor, honraria formulada para compensar a impiedade do tempo, manifestada sobretudo no embranquecimento da barba e das costeletas. Os vendedores esparramados já me chamaram de “fera” ou “campeão”, indelicadeza que respondo de forma não verbal, desistindo do negócio – salvo se for para comprar um pão Tabrulai. Aí faço ouvido grosso e compro mesmo.
Mas o que aconteceu naquela quente manhã me fez sentir um Getúlio Vargas às voltas com sua amante secreta. Em 17 de abril de 1937, o presidente/ditador escreveu no diário a respeito desta relação extraconjugal: “Um homem no declínio da vida sente-se, num acontecimento destes, como banhado por um raio de sol, despertando energias novas e uma confiança maior para enfrentar o que está por vir.”
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Foi exatamente isto que senti no balcão do mercadinho. Desenvolvi certa dependência das propriedades medicinais de ser tratado por moço no declínio da vida. Se amanheço sob rebeldia de fios grisalhos, se olheiras denunciam uma noite mal-dormida, se me irrito com o teatro de legalidade dos senadores contra um governo democraticamente eleito, corro ao mercadinho só para ouvir dela, a menina do balcão:
– Em que posso servi-lo, moço?
Sinto a autoestima subir à estratosfera. Recupero o viço.
Na minha cozinha, não pode faltar azeite de oliva e alho. Sempre tenho provisão para meses. Domingo passado, levantei curvado pelo peso dos anos, alquebrado. Mirei o espelho e vi um sujeito decrépito refletido. Não sei, acho que ando comendo mal, me exercitando pouco, trabalhando demais. Precisava de carinho. Então escondi o alho no porta-luvas do carro só para ter um pretexto para ir ao mercadinho.
E fui.
Saboreei cada sílaba da minha dose de “moço” com olhos fechados, enquanto o alho que eu não precisava era pesado. Agradeci e, a caminho do caixa, desviei de uma idosa de cabelos brancos desgrenhados, passos vacilantes. Segundos depois, ouço uma voz familiar:
– Em que posso servi-la, moça?
Atrás de mim, a menina do balcão abria o habilidoso sorriso para a idosa…
Mas, previno, me farei de surdo. Cazuza já ensinou: mentiras sinceras interessam.