Zé Marrão morria de medo. Quando a pescaria terminava – sempre depois da meia-noite, uma escuridão danada, a praia vazia -, ele acomodava nas costas a tarrafa com 15 quilos de peixe e, logo no início da caminhada, bem na frente daquele morro onde se amontoam crânios e ossos humanos, seus cabelos começavam a subir. Iam subindo, subindo, e Zé Marrão caminhando, e os cabelos subindo, e Zé Marrão caminhando, e os cabelos subindo, e Zé Marrão correndo, correndo, correndo, até que finalmente ele passava do morro e os cabelos desciam.
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— Ainda hoje, se eu andar por ali, o cabelo se arrepia. Mas só de noite. De dia, nunca houve nada – afirma José Carlos Silveira, o Zé Marrão, 66 anos.
E teve uma vez que uma espécie de porco preto, com orelhas enormes e pontudas, rápido feito uma flecha, desceu correndo o mesmo morro em direção ao pescador João Lucindo, que tarrafeava com o filho pequeno no fim da tarde. João Lucindo, hoje aos 82 anos, diz que ergueu o menino da areia e saiu em disparada, com a criança nos braços, mas quando olhou para trás, adivinhe?, não havia mais nada.
O tal morro é um dos quatro sambaquis do Farol de Santa Marta – balneário de Laguna que abriga a maior comunidade pesqueira de Santa Catarina. Diz a doutora em Arqueologia Madu Gaspar, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que os sambaquis foram cemitérios indígenas: há 6 mil anos, quando alguém morria, os antepassados dos índios sepultavam o corpo em meio a milhares de conchas recolhidas à beira-mar. Mas os pescadores duvidam da tese científica, dizem que foi coisa do dilúvio – aquele da Bíblia, quando Noé construiu sua arca.
– O dilúvio remexeu o mar inteiro, matou um monte de bicho e gente. E ficou tudo amontoado ali. Se os índios fossem comer os mariscos de todas aquelas conchas, teriam morrido de diarreia – conclui Zé Marrão, lembrando da noite em que oito cavalos relincharam, correram e corcovearam ao pé do morro “como quem via fantasma”.
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Em um dia de sol, a comunidade inteira decidiu Pescador Lucindo diz já ter tomado sustos perto dos morros de sambaquis enfrentar o sambaqui. João Lucindo se mostra culpado enquanto recorda a história – faz quase 50 anos, mas as marcas seguem lá. Naquela época, não havia estrada para os pescadores acessarem outras praias: eles se deslocavam de caminhão em meio às dunas e, com frequência, atolavam as rodas na volta para casa. Passavam dias dormindo no frio do relento. Como o poder público nunca construía estrada nenhuma, resolveram arrancar as conchas do sambaqui e usá-las como cascalho – as ossadas que apareciam iam para estrada também.
Hoje, há um buraco do tamanho de um campo de futebol, com três metros de altura, no topo do morro: foi tudo retirado com caçambas e mais caçambas de caminhões.
– Eu não sabia que isso era um patrimônio da história do país, não sabia que era tombado, não sabia que era proibido mexer. Se soubesse, jamais teria feito nada disso – desculpa-se João Lucindo, garantindo que ninguém daquela comunidade nunca mais vai se meter com os sambaquis.