Sem velório e na presença apenas do coveiro e de uma policial civil, um pai sepulta os restos mortais do filho em uma gaveta do cemitério do Itacorubi, em Florianópolis. No cimento fresco, o funcionário escreve apenas o nome: Gilmar Baziotti. É março, mas a morte havia ocorrido quase cinco meses antes, em novembro. A certidão de óbito aponta como causa da morte “indeterminada; carbonização”. Aos 23 anos, Gilmar foi uma das cinco pessoas encontradas pela polícia executadas de forma bárbara nas comunidades da Papaquara e Morro do Mosquito desde 2016.
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— Foi uma tristeza só — recorda a policial civil Cláudia Tolentino, que acompanhou o caso e ajudou o pai de Gilmar nos trâmites do enterro.
A forma como os criminosos executam seus alvos na Papaquara – a tiros, mediante tortura e queimando os corpos em meio a pneus, ferragem, colchões e madeira – faz da região um território do chamado tribunal do tráfico, orientado por uma lei paralela de bandidos, com julgamento e pena de morte. Foi o caso de Gilmar.
Natural de Pedreira, no interior de São Paulo, o rapaz morava em Santa Catarina desde 2014. Envolvido em pequenos delitos e usuário de drogas, saiu de sua cidade natal após sofrer uma tentativa de homicídio. Foi parar em Camboriú, onde morou com a família de um pastor e passou a frequentar uma igreja. Depois, residiu em Joinville e, por último, foi para a Capital, onde trabalhou com passeios de barcos no norte da Ilha. Em todos os lugares por onde passou há registros de prisões por pequenas quantidades de entorpecente. Na cadeia, o histórico é de estudo e bom comportamento.
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Em seu último contato com a família, em novembro do ano passado, o rapaz disse que estava contente, trabalhando e que pretendia retornar à igreja. Os parentes não tiveram notícias dele até o dia 6 de dezembro, quando um telefonema à polícia de Florianópolis apontou que Gilmar, então desaparecido, poderia ter sido morto e queimado na Capital catarinense. Policiais associaram a informação com restos mortais de um corpo encontrado na Papaquara, na manhã de 15 de novembro, ainda ardendo em chamas no final da Servidão Braulina Machado. Após teste de DNA, a Delegacia de Desaparecidos confirmou que se tratava de Gilmar.
Em situações de extrema violência como essa, fatalmente a lei do silêncio impera. A polícia fez várias incursões, mas sem sucesso diante da comunidade temerosa por retaliações. Cinco suspeitos foram apontados no inquérito como autores. Um deles é o mesmo adolescente que, no último janeiro, participaria do assassinato da turista gaúcha Daniela Scotto de Oliveira Soares, 38 anos, morta ao entrar por engano com o carro da família na Papaquara. No entanto, a Justiça negou os pedidos de prisão dos suspeitos e arquivou o inquérito por falta de provas – a investigação da Polícia Civil se baseou em denúncias anônimas. O crime está impune, e a apuração só pode ser reaberta se surgirem novas informações.
— A Papaquara tem apenas dois acessos, não há fluxo de pessoas e de veículos, o ambiente é sem trânsito externo, tem o fator surpresa, o tráfico se esconde com a chegada previsível da polícia. Casas e terrenos de moradores são usados pelo tráfico, os líderes são adolescentes com falta de opções. O Estado só reage e agora os criminosos ainda estão fazendo crimes bárbaros para impressionar e vangloriar status no crime — diz um policial militar que trabalha na região.
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As investigações da Polícia Civil indicam que há dois líderes do crime organizado no bairro que estariam presos no Paraguai, de onde mandariam drogas e armas, um deles conhecido como Pesão. As apurações levantam suspeitas de que há mais pessoas mortas e enterradas na Papaquara, a maioria pequenos usuários de drogas, devedores ou que se envolveram em brigas.
“Pessoas só vistas quando cometem crimes”
A defensora pública Fernanda Mambrini Rudolfo atua em processos criminais e conhece a realidade dos bairros menos favorecidos economicamente. Para ela, a presença estatal e as políticas públicas básicas não existem nestes lugares e essas pessoas acabam sendo vistas pelo Estado apenas quando cometem crimes.
— São vulneráveis porque a carência é grande de creches, educação, saúde, cultura e lazer e os jovens acabam se envolvendo com organizações criminosas, que estão se expandindo, agem como tribunais próprios e com essa justiça paralela — lamenta Fernanda.
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Ela cita Florianópolis e Joinville como municípios com esses crimes graves e diz que há fatos esporádicos nas outras regiões.
Integração entre delegacias ajuda
Guerra de facções, criminosos impiedosos, lei do silêncio e a não aplicação de medidas aos adolescentes infratores tornam ainda mais difícil a retomada de paz no norte da Ilha. Somente neste ano, a região foi palco de mais de 50 das 113 mortes violentas em Florianópolis.
— A impunidade com adolescentes certamente é um dos fatores para essa violência na região — pontua o delegado Wanderlei Redondo, da Delegacia de Desaparecidos.
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Mas um ponto positivo é a integração entre as delegacias que investigam esses crimes. O delegado Antônio Cláudio Joca, da Diretoria Estadual de Investigações Criminais (Deic), cita o contato frequente entre a Deic, policiais da Delegacia de Homicídios e a Diretoria de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública.
O trabalho conjunto serviu, por exemplo, para a prisão de dois envolvidos no cruel assassinato de Cléber Almeida, 36 anos, torturado e morto a tiros no Morro do Mosquito, na Capital. O crime foi gravado, e o vídeo se espalhou recentemente em redes sociais. Almeida era de São Bernardo do Campo, em São Paulo, e morava em São José. A investigação suspeita que antes de ser morto ele foi visto no Morro do Mocotó e, por isso, pode ter sido associado à facção rival.
– Temos compartilhamentos e contatos diários. Os resultados têm sido positivos e estão chegando ao Judiciário – afirma o delegado Joca, cuja equipe prendeu dois suspeitos pela morte de Cléber.
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Mortes brutais não são novidade
A violência na Capital teve o seu momento mais crítico no começo dos anos 2000, um período marcado por assassinatos frequentes nos morros do Maciço (região Central) e na Costeira. Houve crimes apavorantes, como o do cadeado e o do micro-ondas, ambos com tortura das vítimas antes da execução a mando de chefes do tráfico. O assunto foi tema da reportagem Tribunal do Tráfico pelo DC em 2006. Na época, esses lugares se constituíam como os mais expostos à ação de criminosos. A polícia prendeu os principais líderes do tráfico nas regiões, mas os assassinatos continuaram, ainda que em quantidade inferior. Hoje, os pontos de maior índice de homicídios são o norte da Ilha e o Continente, na região do Monte Cristo e entorno. São áreas empobrecidas, sem a devida atenção do poder público e que passaram a ser refúgio para as facções.
Entrevista com Marcelo Volpato, juiz da Vara do Júri da Capital
“Essas pessoas estão completamente assustadas”
Nos anos 2000, Florianópolis teve crimes com extrema violência. Agora, novamente a cidade se vê impactada com crimes bárbaros, desta vez no norte da Ilha. Por que essa realidade?
Uma das razões que eu vejo é a tentativa do PCC (Primeiro Comando da Capital, facção paulista acusada de comandar crimes em SC) em angariar espaço maior no nosso Estado, de modo geral nos pontos de tráfico de drogas. Essa disputa entre as organizações criminosas tem gerado esses crimes cada vez mais bárbaros.
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Houve um crime recente em que bandidos filmaram a execução…
Sim, é um processo que está em andamento. Houve a decretação da prisão preventiva de alguns dos investigados e ainda se aguarda o cumprimento dessas prisões, além de mais algumas diligências, a análise do Ministério Público e eventual denúncia.
Há muitos adolescentes envolvidos. Existe, entre eles, a sensação de que “não vai dar nada”?
Não saberia dizer se existe uma grande sensação de impunidade. Em relação a adolescentes, sim, mas, sobre esse caso da filmagem, tem um rapaz que não é adolescente, e ele mesmo se mostra. Então, talvez a própria necessidade deles em demonstrar poder e superioridade em relação a outra facção faz com que percam o receio e o respeito pelas autoridades.
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No caso da morte de Gilmar Baziotti, a Justiça decidiu pelo arquivamento. Isso demonstra que algo está errado no atual sistema?
É a dificuldade que se tem, principalmente em relação a esses crimes cometidos em comunidades carentes e no tráfico de drogas, de apurar a autoria, encontrar pessoas dispostas a relatar o que teriam presenciado. É natural, existe o receio de que algo seja feito contra elas. A pessoa, além do medo de que seja ela alvo de alguma ação, tem o receio também de que seus familiares sejam vítimas.
Existe uma lei paralela do tribunal do tráfico?
As organizações criminosas têm seus próprios estatutos, que dizem como vai ser feito esse tipo de julgamento. Quando acontece de algum membro não atender aos seus desígnios é feito um encontro, uma reunião – nem que seja por telefone – dos integrantes de alto escalão daquela organização para fazer uma análise disso. Também são alvos desses julgamentos aqueles que tenham desavença ou um usuário que não tenha pago alguma dívida, assim como algum traficante que esteja mais abaixo na hierarquia e que, eventualmente, não repasse algum valor. Eles têm regras próprias, e é claro que é um julgamento que não tem nenhuma formalidade, nenhuma defesa. É simplesmente uma execução.
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Onde o Estado deve melhorar?
Além de se fazer mais presente nas comunidades, principalmente auxiliando nas questões sociais, deveria investir em educação, em processo a longo prazo. Em 2014 e 2015, tivemos diminuição nos homicídios em Florianópolis. Mas em 2016 aumentou e, agora, em 2017, chegamos e esse patamar assustador. As medidas não se mostraram duradouras.
O que o senhor nota nessas famílias que perdem seus parentes?
Temos contato nas audiências. São pessoas que até presenciaram crimes ou conseguem nos resgatar um histórico para o indicativo da motivação. Essas pessoas estão completamente assustadas com a criminalidade crescente e a dificuldade em ter um amparo do poder público. Mas há dificuldade, por exemplo, de se ter um programa efetivo de proteção de testemunhas que consiga incentivar essas pessoas a darem seus relatos e terem a segurança garantida.