Parece assunto de ficção científica, mas é a realidade e alertas de quem dedica a vida a estudar as mudanças climáticas. A seca e as queimadas históricas no Brasil das últimas semanas refletem a aceleração de um fenômeno que atravessa décadas: o aquecimento global. Se por um lado o desequilíbrio no planeta está aumentando o número de eventos extremos, como a falta de chuva em diversas regiões do país, de outro as atividades humanas destroem os ecossistemas capazes de minimizar os impactos.

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Referência internacional no assunto, o cientista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da USP, avalia o cenário. Preocupado com a rápida elevação da temperatura média global, que está em 1,5ºC desde o ano passado, o criador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) explica o que isso significa para os catarinenses e a população mundial.

Nobre atua principalmente em temas relacionados às ciências atmosféricas, clima, meteorologia, Amazônia e desastres naturais. Formulou há 27 anos a hipótese da “savanização” da Floresta Amazônica em resposta aos desmatamentos e é o único integrante brasileiro do Planetary Guardians, grupo que reúne pesquisadores e ativistas em prol de estudos sobre ação climática e proteção de comunidades vulneráveis.

Ele defende que se as emissões dos gases do efeito estufa forem zeradas, será possível frear o aumento da temperatura. Para isso, porém, o caminho é o oposto do percorrido até aqui: no lugar das chamas, restauração florestal. Em vez de desmatamento, respeito às matas nativas. Além das soluções baseadas na natureza — as chamadas cidades-esponjas —, Nobre destaca outras alternativas e desafios para aqueles que desejam um futuro com menos adversidades climáticas.

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Confira a entrevista exclusiva

Recentemente o senhor escreveu que está apavorado. Por quê?
É, eu usei essa expressão não muito científica, mas é pessoal e verdadeira. E não sou só eu, todos os cientistas estão muito preocupados porque as previsões que fizemos para o futuro já estão ocorrendo.

Que previsões são essas?
A ciência tinha previsto que se a gente continuasse com as emissões dos gases do efeito estufa crescendo a cada ano poderíamos atingir 1,5°C de aumento da temperatura global em 2028, permanecendo em 1,5ºC em 2035. Aí de repente o que aconteceu? Atingimos 1,5°C em junho de 2023 e a temperatura continuou alta, batendo recorde histórico em agosto deste ano. Inclusive agora em setembro segue quente, a temperatura passou de 1,5°C.

Isso quer dizer que já estamos oficialmente no patamar de 1,5ºC acima do normal?
Ainda não. Pode ser que chegue no fim de 2025, na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP 30, que vai ser pela primeira vez no Brasil, e a temperatura ainda esteja 1,5ºC. Aí a ciência deve dizer: “Olha, atingimos 1,5ºC”. É isso que me apavora, porque todas as metas assinadas pelos países nas conferências climáticas anteriores eram de que a gente não poderia deixar a temperatura passar de 1,5ºC até 2050. Se já estivermos no 1,5ºC, as nações vão ter uma meta de combate à emergência climática muito mais difícil, muito mais desafiadora do que a atual, que é a de reduzir as emissões em 43% até 2030 e zerar as emissões líquidas até 2050.

Então é preciso acompanhar mês a mês a evolução da temperatura média global para confirmar a mudança… Mas o que explica esse aumento tão rápido e o que são as emissões líquidas que o senhor mencionou?
O aquecimento explodiu no ano passado e a gente ainda não conseguiu explicar o porquê. Dados mostram que os oceanos estão ficando muito quentes. O clima todo está ficando muito quente, então o risco ficou grande. Em 2023 havia um El Niño forte, o que explica um pouquinho esse aumento. O problema é que o El Niño desapareceu em maio deste ano e a temperatura continuou alta, batendo recorde quando já não tinha o fenômeno.

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Emissões líquidas são o seguinte: Não tem como você zerar totalmente as emissões, né!? Mesmo que conseguíssemos fazer a transição energética total, ainda teríamos algumas outras emissões, como o arroto do boi, para dar um exemplo simples. A ideia das emissões líquidas zero é remover da atmosfera a mesma quantidade de gases que é produzida.

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Ou seja, influenciar diretamente no equilíbrio dos gases e não deixar a temperatura global subir mais. Como fazer isso?
Com soluções baseadas na natureza, fazendo a restauração dos biomas. Quando você refloresta e faz a Amazônia, a Mata Atlântica crescerem, elas absorvem muito gás carbônico da atmosfera. Estudos mostram que se você conseguir restaurar de 6 a 7 milhões de quilômetros quadrados de floresta (é quase o tamanho do Brasil), retira-se de 5 a 6 bilhões de toneladas de gás carbônico por ano da atmosfera. Isso são emissões líquidas zero.

A meta era chegar às emissões líquidas zero em 2050 para poder começar a falar em emissões negativas, que é quando você remove mais gases de efeito estufa do que produz. Esse é o sonho. A ciência diz: “Faça isso para a gente chegar em 2100 com 1°C mais quente”. Com 1°C mais quente não há muita modificação para a saúde humana e não leva à extinção de espécies.

Então tem uma conta que não fecha. Porque além de todos os sinais indicarem que estamos caminhando para a temperatura acima de 1,5ºC, em vez de cuidar das florestas há essas queimadas em números históricos nas últimas semanas. O desmatamento até diminuiu, mas os incêndios aumentaram. Qual lado da balança pesa mais?
O aquecimento global está fazendo explodir os incêndios em todo o mundo [por conta do aumento no número de tempestades com descargas elétricas], mas 97% dos incêndios no Brasil não estão sendo provocados por raios. O crime organizado quer derrotar as políticas de proteção dos biomas brasileiros. A ministra Marina Silva tem toda a razão quando diz que as queimadas são os “novos” desmatamentos. Aliás, eu já conversei com ela sobre isso e ela concordou comigo. A primeira vez que o desmatamento caiu e não aumentou desde 2012 foi em 2023.

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A coisa estava indo muito bem porque o sistema de vigiar as áreas começou a ser sério, o INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] produz esses dados através de satélite geoestacionário, que manda informação a cada 10 minutos. Então ele pega um desmatamento algumas horas depois, e como leva dias, semanas para desmatar, dava tempo das autoridades intervirem. Agora o fogo, não.

Infelizmente o sistema só detecta o fogo quando o tamanho da área atingida é de 30 a 40 metros quadrados, o que leva uma hora e meia para acontecer, se o tempo estiver super seco. Então o INPE recebe esses dados cerca de 2 horas depois da ação criminosa. Ou seja, a pessoa já não está mais lá.

Viu a diferença? Algo que levaria semanas está levando minutos. Milhões de animais morrem porque não conseguem fugir a tempo dos incêndios. É uma guerra contra a biodiversidade.

Além de matar animais e destruir as florestas — nossas maiores aliadas diante do aquecimento global —, as queimadas enviam gases para a atmosfera em larga escala. O que fazer para enfrentar essas ações criminosas?
Combater o crime organizado não é fácil. Eu tenho feito sugestões, uma delas é começar a ter sistemas supermodernos com inteligência artificial, com drones para detectar incêndios imediatamente e acionar brigadistas, que teriam de ter o número multiplicado em 10 ou 20 vezes.

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E como nós podemos lidar com a emissão dos poluentes?
Nós temos que ter uma eficiência muito maior de políticas públicas. Outra mudança cultural muito importante que nós precisamos acelerar a jato, para ontem, é o uso de máscara. A expectativa de vida cai por conta da poluição. Precisamos ampliar a restauração florestal com o uso de tecnologias, reduzir a queima de combustíveis fósseis, fazer a transição energética. Essas alterações vão melhorar muito a saúde da humanidade.

Para nós aqui no Sul essa questão da seca e das queimadas parece algo distante, exceto pelo fato de termos passado dias com o céu tomado pela fumaça e com menos chuva. Quais são as consequências diretas para a nossa região?
Se a gente perder a Amazônia, a gente diminui o transporte de umidade para o Sul através dos chamados rios voadores. O Sul não tem uma longa estação seca, chove quase o ano todo. Os estudos mostram que se esse transporte de umidade reduzir [por conta do desmatamento], a estação seca no Sul será mais longa. Vocês teriam um clima parecido com o do Sudeste. E isso teria um impacto grande em toda a biodiversidade, que evoluiu aí no Sul para suportar estações secas curtas. Outra consequência seria o fim da Mata Atlântica em Foz do Iguaçu, no Paraná, região onde o cerrado se estenderia.

E qual o papel de SC diante do aquecimento global?
Santa Catarina também tem um alto grau de emissões [de gases de efeito estufa] e o principal fator é a agropecuária, principalmente a pecuária. Como convencer os agricultores e pecuaristas a praticar a chamada agricultura regenerativa é um desafio gigantesco.

Se não evoluirmos nessas ações para desacelerar o aquecimento do planeta, o que vai acontecer se continuarmos com o 1,5ºC acima da média, além do já comprovado aumento na quantidade de eventos extremos?
Essa temperatura de 1,5°C já acelera o derretimento dos mantos de gelo da Groenlândia e da Antártica. Se continuar aquecendo, chegaremos ao final do século com o nível médio do mar mais elevado, isso vai afetar 500 milhões de pessoas que moram em zonas costeiras. Fora que estamos tendo tempestades mais fortes em todo o mundo, o que gera ressacas mais fortes. Além do aumento do nível do mar, quando tiver ressacas, elas poderão atingir até 5 metros a mais do que atingem hoje.

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Se o próximo passo são os 2ºC, o seguinte seriam os 2,5ºC. O que isso significaria?
Um suicídio planetário. Chegar nos 2°C já é um enorme risco, passar disso é fazer as tempestades ficarem mais fortes, as secas muito mais rigorosas, as ondas de calor mais intensas e frequentes… As ressacas e o aumento do nível do mar vão acelerar, vai extinguir um grande número de espécies dos oceanos, perderíamos no mínimo 50% da Floresta Amazônica, que se tornaria um ecossistema com pouquíssimas árvores.

A Amazônia armazena de 150 a 200 bilhões de toneladas de carbono. Seria jogar de 250 a 300 bilhões de toneladas de gás carbônico na atmosfera, caminhar para os 3ºC e assim sucessivamente. Então olha que situação… Se passar de 4ºC no próximo século, a gente tem a chamada sexta extinção das espécies. A quinta foi a 63 milhões de anos atrás [a que acabou com os dinossauros].

Que conselho o senhor dá para as pessoas em relação aos gestores públicos, que têm papel fundamental na implementação de políticas públicas para mudar essas questões?
Votem em candidatos que olhem para soluções sustentáveis. Precisamos criar mais “cidades verdes”. Em termos de Brasil temos muito pouco disso.

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