Em entrevista ao jornalista Rodrigo Faraco, da RBS SC, Guga relembra de alguns momentos da caminhada que o levou até o improvável título de Roland Garros em 1997. Olhando para o passado, o ex-tenista hoje percebe o tamanho da missão que encarou e fala dos momentos especiais da conquista que marcou o esporte brasileiro.

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Como é, 20 anos depois, olhar para trás e ver o que fez?

Eu comemoro em todos os anos. Nesse ano, a coincidência do número redondo tem uma reflexão especial. Foi a primeira vez que fui rever aquele momento de celebração. Eu sempre vejo jogos, alguma coisa das partidas, as reportagens da época. Mas parei para ver como foi que me relacionei com o momento de ganhar o título. E é algo muito estranho. Eu vejo aquele menino e penso: não é possível. É cada vez mais impossível pensar naquilo conforme o tempo passa. A gente entende melhor as circunstâncias hoje. A minha real capacidade, naquele momento, estava a anos luz de distância de ganhar nas oitavas ou nas quartas de final, quanto mais o torneio inteiro. Aquilo antecipou três anos da minha carreira, era algo que deveria ter acontecido lá na frente. Em 14 dias, parecia que cada 24 horas se transformavam em seis meses de aprendizado, que era preciso colher para levar para a próxima partida.

Minidoc: 20 anos da conquista de Roland Garros por Guga Kuerten

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Fui dialogando bem com isso. A gente montou estratégias muito boas, e o Larri foi muito competente em me esquivar dos perigos, dos deslumbramentos, dos espantos por chegar na reta final. Era inadmissível, incompreensível, ganhar do Kafelnikov naquela época. Era para ele ter sido campeão em 1997 com uma mão nas costas. De alguma maneira, o Larri me convenceu a pelo menos tentar. Hoje, olho e fico assustado, e ao mesmo tempo satisfeito, um gosto especial por isso ter acontecido. Saí das quartas de final com a convicção de que seria campeão. Com 20 anos, era um menino tranquilo. É uma história de cabeça para baixo, e a partir daquilo a minha vida se transforma.

Para quem viu de fora, o sentimento era de espanto, de admiração. Para você, era a confirmação de que estava no caminho certo?

Tudo o que precisava ser feito já tinha acontecido. Se não fosse em 1997, eu iria estourar em 1999, 2000. A gente fez muita coisa boa e foi por isso que acabou dando certo. Espantosamente, deu certo em 1997. Eu não entendia aquela dimensão do tênis. Provavelmente, em 1998, do meio para o final, eu iria começar a dialogar com a perspectiva de me transformar em ídolo, de chegar nos maiores torneios do mundo, ficar entre os 10 melhores. Mas tudo aconteceu de uma hora para a outra. Ultrapassei 300 páginas do tênis em duas semanas, e também comecei a aparecer para as pessoas. Surgiu um outro elemento: o personagem, o atleta, o ídolo, que foi algo que não teve uma construção. Foi como entrar numa avalanche e sair surfando, brincando com as coisas que iam acontecendo. Em seis meses, foram 50 novas situações por dia, de entrevistas, de frustrações na quadra. Tudo era uma nova realidade, era outro universo. Depois daquele Roland Garros, poderia virar a celebração do “chegamos, é vitória, linha de chegada”. Era um novo começo a ser desbravado, essa coisa da dimensão do esporte, do top, do grande escalão. Entrar na quadra como favorito, de mexer com milhões de pessoas, entrar na casa das pessoas todos os dias, o ano inteiro. Começar a experimentar isso de uma hora para a outra e tivemos que aprender com o barco andando.

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Naquela época, como chegava para você a repercussão do que estava acontecendo no Brasil?

O contexto daquela época é muito diferente do que é hoje. Eu ficava sabendo depois, quando voltava de viagem. Não tinha como sentir as coisas como se sente hoje. Hoje, vejo imagens do povo na rua, invadindo a Beira-Mar… Eu não conseguia entender a proporção daquilo, da Gugamania, em que o povo usava as faixas. Por um lado, dá uma pena por não ter vivido isso, mas ainda hoje é muito bacana ver essas imagens, saborear o que aconteceu. Por outro lado foi bom, pois me deixou mais sereno. O que aconteceu nos seis, 12 meses seguintes era tomar um monte de porrada. Fui jogado na jaula do leão, enfrentando só cara top 10, top 20. Não tinha para onde escapar. Na época, nem internet tinha direito, nem dava tempo: era quadra, treino, jogo, torneio. Por isso, hoje há espaço para celebrar esses detalhes. Contam as coisas para mim e eu fico imaginando. O pessoal se sentia lá dentro de quadra, entrava comigo para jogar. Era controle remoto quebrado, vó que não deixava o neto entrar na sala, marido que assistia jogo na cozinha. Tem muita história bacana. E é gostoso saborear ainda hoje e sentir sensações como essa.

Você ganhou de muitos jogadores bons em 1997. Hoje, comparando, quem seriam esses caras?

Era ganhar de gente como Djokovic, Nadal, Federer. Era ganhar dos números um, dois e três do mundo. Seriam esses caras fantásticos. O Grand Slam só é vencido por jogadores tão capazes quanto os top 10 do mundo. No tênis, é difícil o pior vencer do melhor. No futebol, um time faz gol, recua, joga fechadinho. No tênis é improvável jogar melhor que esses caras. Pode acontecer uma vez, mas vem o segundo jogo e alguém te atropela. Eles só vencem entre eles. Eu entrei como o patinho feio da história. Contra o Bruguera, entrei com tranquilidade, convicção, segurança. Nisso tem um pouco do espírito da minha avó, que chegou lá em Roland Garros e pensou: “Olha só que bonitinho isso aqui, tem umas florzinhas…”. Dessa maneira, a gente foi chegando e levou o título na simplicidade, na diversão. Foi a química do sucesso.

Como vai contar essa história para os seus filhos?

Dentro de uma esfera mais normal possível, mas também fazendo com que eles entendam que a façanha é muito gloriosa. A façanha é importante, mas o título não é só do Guga. Tem muitas decisões do Larri. Eu não tinha condições de, no quinto set, perdendo por 3 a 0 para o Muster, de pensar que poderia ganhar. Aí foi meu irmão lá, gritou, me deu uma acordada. O que me facilita na hora de abordar este assunto é que é uma história de sucesso, de conquista. É importante que eles saibam e entendam que o pai foi um dos colaboradores desse grande sonho, algo construído por grandes esforços.

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E a relação com seu pai, o cumprimento da profecia dele?

O pai me acompanha sempre, sinto ele muito próximo de mim. Tudo o que faço, tem uma representatividade, uma presença muito grande dele, das ilusões, do orgulho, do exemplo. O jogo do Medvedev (oitavas) foi o momento mais carinhoso da lembrança. E ele estava me conduzindo em quadra, no grande momento. Nas quartas de final também, podendo entregar essa felicidade para que, de alguma forma, ele também conseguisse saborear. Ele é 100% presente na minha vida. O que sou teve grandes esforços de muitas pessoas, e ele foi o grande precursor de tudo isso. Foi o sonhador, o visionário. Teve a clareza e a convicção de que eu ia encontrar muito sucesso no tênis. Em Roland Garros, quando termina, o momento de maior dedicação, de reverência, é à ele. No jogo contra o Medvedev, eu vi que ele estava lá, dando aquele carinho e incentivando.

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