Nem precisa ver. Basta ouvir. Desde o começo da pandemia do novo coronavírus o ruído dos motores das motocicletas se tornou mais intenso. Com o isolamento social, muita gente passou a usar o serviço de motoboys. Para dar conta da demanda, os trabalhadores aceleram pelas ruas e rodovias. Sonho de sustento para muitos que perderam o emprego, o veículo também carrega o perigo. Entre março e abril deste ano foram seis mortes de motociclistas somente em Florianópolis. Nem sempre fatal, às vezes o acidente deixa outras marcas dolorosas. 

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É o caso de Gabriel Edgar, 22 anos, que se acidentou na tarde de dia 2 de junho, na SC-401, sentido Ingleses, Norte da Ilha de Santa Catarina. Foi socorrido, hospitalizado, entrou em coma, levado para a UTI, passou por cirurgias. Recebeu platina no rosto e na perna e em breve começa a tratar dos dentes que se deslocaram. Foram sete dias internado no Hospital Governador Celso Ramos.

Gabriel trabalhava como garçom, mas perdeu o emprego por causa da pandemia. Como tem motocicleta, achou que podia trabalhar no transporte de pessoas e de objetos. Conforme ele, a colisão com um carro aconteceu porque tentou evitar o choque com outra motocicleta que, segundo ele, cometia imprudências. Gabriel se recupera em casa, mas por causa da cirurgia no fêmur não caminha sozinho. Depende da cadeira de rodas e do andador. 

– Este acidente mexeu muito com a nossa família. Minha mãe está sem emprego, temos aluguel e conta para pagar e se não fosse os amigos a situação seria bem pior. 

Ainda com as sequelas no corpo e na fala, Gabriel manda um recado para os motociclistas: 

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– Redobrem a atenção e não cometam imprudência. Existem outras vidas sobre duas rodas ou outros veículos, pessoas como eu, que estão trabalhando. 

Assista no vídeo abaixo o depoimento de Gabriel sobre o acidente.

Sindimoto chama atenção para inexperiência no trânsito

A realidade é preocupante, reconhece Fernando Israel dos Santos, um dos diretores do Sindimotos. A entidade representa a categoria com vínculo empregatício formal na região de Florianópolis. Para Santos, muitos trabalhadores convivem com a inexperiência do trânsito. 

São pessoas como Edgar, as quais perderam o emprego e encontraram nos aplicativos um meio de sobrevivência. Porém, observa, a jornada de trabalho mudou bastante por causa do isolamento social. A demanda aumentou e o tempo para executá-la ficou menor. 

– A realidade é que o entregador se vê obrigado a acelerar cada vez mais – conclui Santos. 

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Num país com 13 milhões de desempregados e com a pandemia arruinando ainda a mais a economia, é difícil despertar para a conscientização. Mesmo assim, o Sindimotos está fazendo uma chamada nos grupos de WhatsApp para paralisação em 1º de julho. A ideia é chamar a atenção dos entregadores de aplicativos, assim como ocorreu em São Paulo e Rio de Janeiro, sobre riscos do excesso de trabalho, baixa remuneração, falta de direitos trabalhistas. 

– Antes da pandemia se ganhava em média R$ 2 mil por semana; hoje para alcançar a mesma quantia tem que trabalhar de um a dois meses já que tem muita gente no mercado – explica.

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De cada 10 leitos, oito para motociclistas

Dados recentes do Ministério da Saúde confirmam que o ruim ficou ainda pior. Em condições normais, antes da pandemia do coronavírus, 60% dos leitos do Serviço Único de Saúde (SUS) eram ocupados por vítimas de acidentes automobilísticos no país. De cada dez em atendimento pelo trânsito, oito são motociclistas e pelo menos um sofre mutilações. Acidentes que normalmente tendem a ser mais perigosos, pois o veículo de duas rodas deixa o motorista mais exposto.

O resultado pode ser visto nas emergências. A maioria são homens que perdem anos de vida produtiva, além de gerar altos custos ao SUS. Pacientes que normalmente precisam de duas ou três cirurgias com especialistas diferentes. Além disso, ficam três vezes mais tempo em UTIs do que qualquer outro doente. 

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Há 10 dias, a Secretaria de Saúde do Estado divulgou uma nota sobre superlotação nos corredores do hospital Regional de São José. Justificou que a média de cirurgias ortopédicas estava em torno de 20 por dia, e prometeu um mutirão para as represadas. Nesta semana, as redes sociais trataram do desabafo de um médico sobre o número de amputações, 11 em 15 dias, em usuários de motos. 

As consequências desta realidade devem ser sentidas no Centro Catarinense de Reabilitação daqui a alguns meses. Referência no atendimento a amputados, o CCR foi reaberto 15 dias atrás depois que os serviços estiveram suspensos por determinação do decreto estadual sobre a pandemia, em março. Antes de buscar o CCR, explica o médico André Sobierajski dos Santos, o acidentado passa por um período de internação hospitalar, consultas e cirurgias. A retirada da prótese é um processo mais ao final, diz. 

Dados do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) apontam uma redução no número de acidentes comparando-se o mesmo período de 2019 e 2020. Na área neurológica, por exemplo, caiu em torno de 5% a menos. A questão é a gravidade com que os acidentes ocorrem.

Nos últimos três meses, foram 807 os motociclistas e motofretistas atendidos nos quatro hospitais de referência em ortopedia do Estado (três em Florianópolis e um em Ibirama). A informação é da Secretaria de Estado da Saúde.

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“Recebo 70% do valor cobrado pelo aplicativo”

O motociclista Moacir Camargo dos Santos assume o erro após furar um sinal vermelho e bater na lateral de um carro. Acredita que parte por ter menos movimento nas ruas. 

Motociclista Moacir Camargo dos Santos
Motociclista Moacir Camargo dos Santos (Foto: Arquivo Pessoal)

– Foi feio. Mas a gente não tem plano de saúde e precisa voltar a trabalhar o mais rápido possível – diz. 

O acidente foi no dia 30 de maio, às 14h05min, quando ele encerrava um dos turnos das entregas. Casado e pai de dois meninos, o motociclista não tinha seguro da motocicleta e por trabalhar como autônomo e para um aplicativo também sem direitos trabalhistas. 

– Muita gente já voltou a trabalhar e a demanda diminuiu, mas nos primeiros dias era uma correria grande. Recebo 70% do valor cobrado pelo aplicativo, por isso, preciso ser rápido e assumir uma segunda jornada como autônomo – explica. 

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Além da imprudência, outros fatores contribuem para acidentes: condições de tempo, vias danificadas, sinalização inadequada. Conforme o Boletim Especial Relatório Motociclistas e Ciclomotores, nos últimos dez anos, mais de 2,3 milhões de vítimas foram indenizadas na condição de motoristas da motocicleta. 

Em 2018, eles representaram 68% de todas as indenizações pagas por ocorrências envolvendo motocicletas e as chamadas “cinquentinhas”. A maioria dos condutores (70%) ficou com algum tipo de invalidez permanente após o acidente. 

País reduziu mortes, mas ainda longe da meta 

Em maio de 2011, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou a Década de Ação pela Segurança no Trânsito. O projeto, que contou com apoio de diversos países, tinha como objetivo reduzir as mortes no trânsito. O Brasil foi um dos signatários da resolução e se comprometeu à época a diminuir em 50% o número de óbitos até 2020. 

Os dados atuais apresentados pelo Ministério da Saúde mostram que o número caiu como um todo. Mas a meta estabelecida está longe de ser alcançada. Parte porque o país optou mais por ações de fiscalização e punição do que educativas. Apertou com relação ao consumo de álcool, mas não trabalhou para a redução de velocidade nas vias urbanas e estradas. 

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“Trabalhar sobre duas rodas pode ser muito cansativo, física e mentalmente”

Especialista Celso Alves Mariano analisa o assunto
Especialista Celso Alves Mariano analisa o assunto (Foto: Celso Mariano/Arquivo Pessoal)

Leia a seguir uma entrevista com Celso Alves Mariano, engenheiro e especialista multidisciplinar em trânsito, diretor do Portal do Trânsito.

Muita gente diz que os motociclistas são imprudentes no trânsito e que por isso sofrem acidentes. O senhor concorda? 

Sim, concordo. Mas parcialmente. Não é uma regra geral: existem muitos motociclistas que nunca se envolveram em acidentes. Quem é prudente e respeita as regras de trânsito e as do bom senso, não contribui para que acidentes aconteçam. E dificilmente se envolvem em acidentes. 

Como especialista em trânsito, quais outros fatores de risco o senhor enumera para quem anda/trabalha sobre duas rodas? 

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Os comportamentos de risco ligados à imprudência, como excesso de velocidade e uso do celular durante a condução são, com certeza, os mais significativos. Mas negligência e imperícia também estão por trás de muitos desastres. Pneus carecas ou mal calibrados, por exemplo, são negligências que podem levar a situações críticas que se transformam em acidentes. Não ter a habilidade mínima necessária para pilotar com carga, ou na chuva, também pode levar a pequenos e grandes desastres. 

Do ponto de vista da mobilidade, o que o senhor que é consultor de trânsito em Curitiba considera que nossas cidades precisam melhorar para termos um trânsito mais humanizado? Como isso pode ocorrer? 

Falhamos gravemente no básico: esforço legal, engenharia e educação, ainda é o essencial não resolvido no trânsito brasileiro. Mais do que atender cada uma destas três áreas, ainda é preciso que haja um equilíbrio entre elas. Não fazemos bem nem uma, nem outra coisa. 

Qual o conselho que o senhor daria para um motociclista de aplicativo nestes tempos de pandemia? 

Pilotar exige muitas habilidades. Lembre-se que moto é um veículo que sequer para em pé sozinho. Trabalhar sobre duas rodas, especialmente por longas jornadas, pode ser muito cansativo, física e mentalmente. Fazer isso com segurança demanda, realmente, muito esforço. Esteja preparado para as rotinas sem subestimar os riscos do trânsito ou o tamanho das suas responsabilidades. E o principal: não superestime suas capacidades. Pilotagem defensiva é mais do que habilidade e atenção: é consciência.

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