*Por Katherine J. Wu
No início de abril, Edna McCloud acordou e viu que suas mãos estavam amarradas à cama do hospital.
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Ela havia passado os últimos quatro dias no ventilador pulmonar de um hospital no Condado de St. Louis, no Missouri, se debatendo e dando chutes sob sedação enquanto estava sendo tratada de um caso grave de Covid-19.
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“Eles me disseram: ‘No fundo, você foi uma verdadeira lutadora'”, lembrou-se McCloud, aposentada afro-americana de 68 anos com histórico de diabetes e problemas cardíacos. Ela pesava quase 136 quilos quando pegou o coronavírus, que devastou seus pulmões e seus rins. Quase seis meses depois, sente-se orgulhosa de ter vencido o desafio. “Eles me contaram que, com as pessoas nas minhas condições, normalmente o oposto ocorre”.
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Como as taxas de obesidade continuam a crescer nos Estados Unidos, seu papel na Covid-19 é uma questão científica espinhosa. Vários estudos recentes mostraram que pessoas com peso extra são mais suscetíveis que outras às crises graves da doença. E experimentos em animais e células humanas demonstraram como o excesso de gordura pode afetar o sistema imunológico.
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Mas a relação entre a obesidade e a Covid-19 é complexa, e muitos mistérios persistem. O excesso de peso tende a andar de mãos dadas com outras condições médicas, como pressão alta e diabetes, o que pode por si só dificultar o combate ao coronavírus. A obesidade também afeta desproporcionalmente as pessoas que se identificam como negras ou latinas – grupos com risco muito maior que outros de contrair e morrer de Covid, em grande parte por causa da exposição em seu local de trabalho, acesso limitado a cuidados médicos e outras iniquidades ligadas ao racismo sistêmico. E pessoas com peso extra devem lidar com o estigma persistente em relação à sua aparência e à sua saúde, mesmo por parte dos médicos, prejudicando ainda mais seu prognóstico.
“Uma nova pandemia está agora se somando a uma epidemia existente”, disse a dra. Christy Richardson, endocrinologista no SSM Health, no Missouri. Sobre os efeitos da obesidade nasdoenças infecciosas, ela revelou: “Ainda estamos aprendendo, mas não é difícil entender como o corpo pode ser afetado”.
As correlações entre a Covid-19 e a obesidade são preocupantes. Em um relatório publicado no mês passado, pesquisadores descobriram que pessoas obesas que contraíram o coronavírus tinham mais do que o dobro de chances de acabar no hospital e quase 50 por cento mais chances de morrer por causa dele. Outro estudo, que ainda não foi revisado por pares, mostrou que, entre quase 17 mil pacientes internados com Covid-19 nos Estados Unidos, mais de 77 por cento tinham excesso de peso ou obesidade.
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Ligações semelhantes foram reveladas durante a pandemia de gripe H1N1 em 2009, quando os pesquisadores começaram a notar que as pessoas obesas infectadas tinham uma tendência maior de acabar no hospital e morrer. As vacinas contra a gripe administradas nos anos subsequentes tiveram um desempenho ruim em indivíduos com peso extra, que adoeceram mais frequentemente do que seus pares mesmo depois de vacinados.
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“A obesidade redefine a fisiologia humana. As pessoas muito obesas vivem uma situação precária. Não é algo apenas cosmético”, afirmou a dra. Anne Dixon, pneumologista do Centro Médico da Universidade de Vermont que estuda como o excesso de peso pode afetar condições respiratórias como a asma.
Especialistas explicaram que parte da ameaça da obesidade é mecânica: grandes quantidades de gordura, por exemplo, podem comprimir a base dos pulmões, dificultando que estes se expandam quando as pessoas respiram. O sangue de quem é obeso também parece ser mais propenso à coagulação, bloqueando vasos delicados por todo o corpo e privando tecidos de oxigênio.
A gordura, ou tecido adiposo, também pode enviar hormônios e outros sinais que fazem as células próximas ficarem descontroladas. “O tecido adiposo é muito ativo, não é inerte”, disse Rebekah Honce, virologista do Hospital de Pesquisa Infantil St. Jude, no Tennessee, e autora de uma revisão recente que descreve como o metabolismo se cruza com a imunidade.
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Um dos efeitos mais potentes da gordura parece envolver a supressão da resposta imune inicial do corpo ao vírus, permitindo que o patógeno se espalhe descontroladamente.
Os agentes de imunidade do corpo vão acabar se unindo, mas essa demora na resposta pode fazer mais mal do que bem: quando as células e as moléculas imunes chegam finalmente a agir, ficam descontroladas, gerando ataques inflamatórios por todo o corpo.
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Essas respostas também podem ter consequências severas em longo prazo, de acordo com Melinda Beck, que estuda como a nutrição afeta a imunidade na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill. Ela informou que a inflamação constante pode desgastar a capacidade do sistema imunológico de gerar uma população de células de “memória”, que armazenam informações sobre encontros passados com patógenos.
Tendências semelhantes têm sido observadas no sistema imunológico de pacientes idosos, que também têm dificuldade de se defender eficazmente contra patógenos. Segundo Beck, quando a obesidade está presente, algumas das células imunes encontradas em pessoas de 30 anos “se parecem com as de uma pessoa de 80 anos”.
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Esses problemas podem ter um grande impacto nas primeiras vacinas contra o coronavírus, afirmou Beck. Se o sistema imunológico dos obesos é mais propenso à amnésia patogênica, eles provavelmente vão precisar de doses diferentes de vacina. Algumas podem não funcionar em pessoas com peso extra.
Mas pouca atenção tem sido dada a esses riscos nos testes de vacinas em andamento. Quando questionados se estavam testando os efeitos do peso na eficácia do produto, os representantes da Novavax e da AstraZeneca, duas das líderes entre as empresas na corrida pela vacina contra o coronavírus, relataram que não havia planos públicos para investigar o problema. Os representantes de suas concorrentes, a Moderna e a Pfizer, não responderam a repetidos pedidos de comentário.
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A Johnson & Johnson, cuja candidata à vacina contra o coronavírus entrou no estágio final dos testes clínicos recentemente, está incluindo pessoas com obesidade, de acordo com um porta-voz da empresa, Jake Sargent. Ele disse que a empresa “terá a oportunidade de avaliar essa questão durante o desenvolvimento”.
Como muitas outras condições que podem exacerbar a Covid, o excesso de peso não pode ser rapidamente corrigido – especialmente em áreas e comunidades em que o acesso a alimentos saudáveis e as oportunidades de exercício são muito irregulares.
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“Se não abordarmos essas questões sociais, acho que continuaremos a ver uma recorrência do que está acontecendo agora”, comentou a dra. Jennifer Woo Baidal, pediatra especializada em gerenciamento de peso na Universidade Columbia.
Em seu bairro no Condado de St. Louis, onde houve mais de 23 mil casos de coronavírus desde março, McCloud tem dificuldade de encontrar produtos frescos e acessíveis no supermercado local. A disponibilidade despencou ainda mais desde o início da pandemia, contou ela, e o pouco que há nas prateleiras muitas vezes está quase podre: “Tenho de cozinhar o que compro imediatamente, senão perco tudo.”
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McCloud às vezes vai um pouco mais longe para comprar produtos para salada ou alho-poró – um de seus favoritos. Mas a loja mais próxima com alguma variedade fica a uma distância inconveniente. Ela estima que, desde que contraiu a Covid-19, perdeu entre 9 e 15 quilos. E conta que quer manter seu peso baixo, mas suas circunstâncias dificultam essa meta, “e só pioraram desde que a pandemia começou”.
Alguns meses depois que McCloud adoeceu, sua irmã mais nova, Elaine Franklin, de 62 anos, começou a sentir dores de cabeça terríveis. Quando falava com membros da família, estes lhe perguntavam por que ela parecia tão sem fôlego. “Meu filho disse: ‘mamãe, você precisa ir ao pronto-socorro'”, lembrou-se Franklin. Um teste logo revelou que ela também tinha contraído o coronavírus.
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O caso de Franklin foi mais moderado que o da irmã, mas mesmo assim se deteriorou rapidamente, a ponto de ela não conseguir mais chegar ao banheiro sem assistência: “Eu estava tão fraca que não conseguia me equilibrar”.
Seus sintomas físicos não foram os únicos problemas. Franklin, que está acima do peso, revelou que se irritava com as incessantes mensagens nos noticiários atribuindo doenças como a dela ao excesso de gordura. “Todas diziam: por ser obesa e não se cuidar, você vai pegar essa doença. Acho isso injusto”, queixou-se.
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Mesmo os profissionais médicos mostram preconceito ao cuidar de pacientes com excesso de peso, afirmou o dr. Benjamin Singer, pneumologista da Universidade do Michigan e autor de uma revisão recente da influência da obesidade na imunidade. Estudos têm mostrado que os médicos tendem a desconsiderar os pacientes com obesidade e a ver sintomas preocupantes como efeitos colaterais do peso. As doses de medicamentos e as máquinas diagnósticas também são muitas vezes incompatíveis com pacientes obesos, dificultando a adaptação dos tratamentos. Tais circunstâncias podem ser um poderoso desincentivo para as pessoas que mais precisam de cuidados.
“Não é uma conversa fácil. É mais do que apenas números, e não é só no peso que devemos nos concentrar”, disse a dra. Kanakadurga Singer, endocrinologista pediátrica da Universidade do Michigan. (Ela e Benjamin Singer são casados.) Nem todos que pesam mais do que a média estão mal, ressaltou.
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No Condado de St. Louis, McCloud e Franklin se recuperaram bem, embora as irmãs ainda lidem com sintomas persistentes. McCloud tem fadiga ocasional e tosse intermitente. “Não posso falar como antes”, revelou ela. As dores de cabeça de Franklin nunca desapareceram, e seus pensamentos agora parecem constantemente turvados por uma neblina.
Ambas ficaram preocupadas com seus filhos, que também pegaram o vírus. Chris McCloud, professor, como sua mãe, foi posto no ventilador pulmonar e passou várias semanas no hospital, pouco antes de Edna McCloud adoecer. Ele também estava acima do peso.
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Franklin suspeita que contraiu o coronavírus de seu filho, Darren Catching, que provavelmente o pegou de um ex-colega de trabalho. Ele havia perdido bastante peso recentemente, disse Franklin, e não foi hospitalizado, recuperando-se em casa.
Em julho, quando foi infectada, procurou atendimento médico duas vezes. Ela tem lúpus, uma doença autoimune, e tinha medo de não conseguir enfrentar o vírus. A lembrança de amigos e conhecidos que tinham morrido de Covid-19 não lhe saía da cabeça.
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Em ambas as vezes, porém, Franklin foi mandada para casa – primeiro em uma unidade de pronto atendimento de urgência, e depois em um pronto-socorro hospitalar.
Ela contou que conseguiu se curar sozinha. Ainda assim, ela se pergunta se seu cansaço e sua confusão mental poderiam ter sido evitados com um tratamento clínico mais atento: “Não sou médica nem nada, mas, se eu tivesse sido hospitalizada, talvez tivesse sido melhor”.