Que Nelson Rodrigues (1912 – 1980) foi um bom cronista, o Brasil sempre soube – mesmo quando sua simpatia pelo regime militar virou motivo para gerações inteiras rejeitarem seus textos como quem rejeitava a própria ditadura. Que em suas crônicas Nelson Rodrigues foi, mais que isso, um ensaísta, na acepção técnica do termo, talvez ninguém até então tivesse afirmado. Ninguém antes do jornalista e professor de cinema Aníbal Damasceno Ferreira.

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Pois Aníbal expôs seus argumentos ao escritor e professor de literatura Luís Augusto Fischer. Fez isso usando frases como “nas crônicas rodrigueanas reunidas sob o título Confissões, a língua portuguesa aprendeu a falar brasileiro” – o que, escreve o próprio Fischer em Inteligência com Dor: Nelson Rodrigues Ensaísta, “para alguém bronqueado com o prestígio excessivo dos modernistas de São Paulo (tidos como os responsáveis pelo feito), como é meu caso, é sopa no mel”.

Fischer comprou a ideia e se debruçou sobre ela em seu doutorado. Defendida em 1998, a tese quase foi publicada nos anos seguintes, mas empacou na liberação dos direitos autorais das crônicas que deveriam ser reproduzidas na íntegra. Inteligência com Dor: Nelson Rodrigues Ensaísta sai só agora, sem essas reproduções integrais, em lançamento da editora Arquipélago (com 336 páginas, a R$ 39). Sua natureza é polêmica, mas sua argumentação tem consistência.

Dois trechos

A presença da serpente

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– O Nelson cronista, hoje, tem o mesmo prestígio do Nelson contista e romancista – diz o autor, instigado a comparar esse prestígio com aquele obtido por Nelson Rodrigues em sua produção para teatro, com a qual alcançou o posto de cânone. – Há uma ideia generalizada de que, tanto nas crônicas quanto em contos e romances, ele faz retratos muito eficazes da vida brasileira. Porém, soando às vezes excessivo, hiperbólico. Em outras palavras, pode-se dizer que se trata de um autor com mercado, com fãs, mas sem reconhecimento acadêmico. Discordo disso no que se refere às crônicas: o Nelson contista e romancista pode ter um apelo sensacionalista, superficial, mas o cronista atinge uma profundidade comum a poucos. Em suas crônicas, ele foi um dos melhores intérpretes do país.

Nelson Rodrigues nasceu em Pernambuco, mas morou a vida toda no Rio, onde atuou como jornalista – desde os anos 1920, levado ao ofício pelo pai, Mário Rodrigues – e também ficcionista e dramaturgo. Revolucionou o teatro brasileiro com peças como Vestido de Noiva e alcançou a popularidade com a publicação de folhetins e outras séries para a imprensa, a exemplo de A Vida como Ela É. Em Inteligência com Dor – expressão pinçada de um texto rodrigueano: “É triste ser inteligente com dor”, escreveu Nelson -, Fischer desmonta um canône da crônica para ressaltar que essas séries publicadas em jornais merecem reconhecimento semelhante àquele obtido por sua produção teatral.

– Rubem Braga (1913 – 1990) é tido como grande cronista, mas sua produção é essencialmente lírica. Nelson, ao contrário, é combativo. Defende mais firmemente suas posições e, com isso, faz uma análise mais profunda, menos floreada das coisas à sua volta – compara. – Nelson foi um conservador, mas esse conservadorismo, aliado a sua inteligência, definiu a sua capacidade ímpar de fazer diagnósticos do país e do mundo. Não quero forçar a barra, mas Machado de Assis (1839 – 1908) não celebrou a Proclamação da República (1889). Como Nelson, era um intelectual conservador. Como Nelson, fazia do humor uma arma. Só que, diferentemente de Nelson, Machado hoje já é reconhecido dentro do sistema literário também por sua produção de crônicas.

A série reunida sob o título Confissões, prossegue Fischer, tem especial valor para demonstrar a validade da tese:

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– Aquilo que alguns interpretam como excessivo, hiperbólico, na verdade é um diagnóstico do patético na sociedade. É aí que está o caráter ensaístico da obra do Nelson: ele se expõe, se revela de maneira despudorada com o objetivo de fazer esse diagnóstico. Quanto mais confessional, mais forte ele é.

O prestígio de Rubem Braga, de novo, funciona como contraponto: Fischer defende que o fato de o autor capixaba ser mais “agradável de ler” faz com que seja o preferido sobretudo na escola, onde somos iniciados no hábito de ler.

– E o Brasil é um país de leitura essencialmente escolar – detecta. – As leituras mais reveladoras, reflexivas, que eu diria de combate, são as leituras adultas. E estas estão cada vez mais raras no país. O Brasil cultua menos o Nelson cronista porque o Brasil lê menos o Nelson cronista.

A esta altura o Nelson Rodrigues ensaísta já está mais do que esboçado, mas o pesquisador gaúcho, buscando comprovar tecnicamente a sua hipótese, listou sete traços que identificam o ensaio como um gênero literário. “As crônicas do Nelson preenchem todos eles”, concluiu.

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Diz Fischer que, para ser considerado ensaístico, um texto deve ter “coragem para a confissão, capacidade de partir do banal e chegar ao transcendental, esforço para diagnosticar o presente, a postulação do leitor, o humor, um certo jeito de tratar a linguagem e, por fim, o que chamo de a unidade do ensaio”. A base da formulação está no francês Michel de Montaigne (1533 – 1592), que com suas análises sobre as instuituições e os costumes de sua época lançou as bases do ensaio. Nelson, aponta Fischer, toca o céu habitado por raros pensadores como Montaigne:

– Como o mestre francês, ele não se importou em dizer o que achava que precisava ser dito, fossem quais fossem as reações que provocasse. Entre os cronistas brasileiros de seu tempo, foi o que mais se aproximou de Montaigne.

Ainda que por esse viés técnico, Inteligência com Dor: Nelson Rodrigues Ensaísta é no fundo um apelo ao reconhecimento da faceta menos celebrada da obra de um gênio brasileiro. Talvez a questão seja saber se o livro chega a tempo da cicatrização das mágoas que restaram dos tempos de maniqueísmo político e pensamento intelectual praticamente unilateral – que empurraram essa produção à obscuridão.

Mas, ainda mais que isso, a tese serve para exaltar a capacidade nacional de produzir grande arte mesmo em linguagens ou gêneros menos tradicionais. Afirma seu autor:

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– No Brasil, tira-se leite de pedra. Falamos de crônicas, mas podemos também falar da música popular. As composições de artistas como Noel Rosa e Chico Buarque têm valor literário altíssimo. Quem diria que se alcança nível tão alto com versos recitados em três minutos? Quem diria que se alcança nível tão alto com poucas linhas publicadas num jornal?