De volta ao debate no mundo inteiro após a onda de protestos nos Estados Unidos, as estátuas de figuras controversas de séculos passados também existem em Florianópolis e trazem histórias que, para muitos, não deveriam ser homenageadas. Do próprio nome da cidade até bustos e estátuas espalhados pela Ilha, a Capital catarinense tem lembranças de personagens com contextos polêmicos nos dias atuais.
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Nos EUA os protestos contra a violência racial após a morte de George Floyd resultaram em ataques também contra estátuas de figuras históricas ligadas à escravidão, generais e colonizadores que, hoje, são vistos como símbolos de violência e segregação. Em outros países, até bustos de Cristóvão Colombo e Winston Churchill foram atacados.
Em um vídeo publicado nas redes sociais, o jornalista e intérprete de patrimônio Rodrigo Stüpp, conhecido pelo projeto Guia Manezinho, levantou o debate sobre monumentos em Florianópolis. Uma das figuras é Francisco Dias Velho, bandeirante fundador de Nossa Senhora do Desterro – hoje Florianópolis. O guia especializado na história de Florianópolis lembra que Dias Velho foi um “caçador de índios” e chegou na Ilha por volta de 1673 com indígenas escravizados, antes de ser morto por piratas. Além de ter uma estátua ao lado do elevado que também carrega o seu nome, no Centro, e estar no brasão do município, Dias Velho é homenageado em um obelisco na Beira-Mar Norte.
Bem no meio da Praça XV de Novembro, outro monumento faz uma homenagem aos “heróis da Guerra do Paraguai”, episódio sangrento da história do Brasil. Stüpp lembra que o monumento foi erguido para homenagear catarinenses mortos na guerra, como Álvaro de Carvalho, mas cita o nome de poucos, esquecendo dos inúmeros escravos levados à batalha.
— A gente olha [para esses monumentos] com os valores do presente, e aquilo te revolta. Se falar hoje em dia em caça de baleias, qualquer um acha um absurdo, mas antes achavam normal e os manezinhos não se sentiam culpados por isso. O olhar pode ser distorcido se usar a lente de 2020. Estando lá, a estátua ou monumento, ela carece de uma interpretação. Se a gente pelo menos usar esse momento para trazer a consciência de que é preciso refletir sobre isso, sobre essas histórias, a gente já está dando um passo adiante – avalia Stüpp.
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Para o guia, é importante manter estátuas e monumentos que lembram da história, assim como também é importante trazer novas figuras a esses locais. Ele cita a própria Praça XV de Novembro, um espaço “construído para as elites” e que, hoje, tem ao seu lado um enorme mural do poeta negro Cruz e Sousa. O mesmo vale para as homenagens feitas a Franklin Cascaes e Antonieta de Barros, figuras que contrapõem as estátuas de outros tempos.
– A Praça XV foi construída sobre a ótica do século 19, numa tentativa de deixar a cidade mais palatável para as elites. Um lugar que foi espaço do poder, a ponto de ser cercada e não deixarem negros entrarem. O fato de hoje ter ali, um Cruz e Sousa gigante olhando pra essa praça de cima, traz um contraste – destaca Stüpp.

“Se tirar de cena, vamos apagar da história as suas cicatrizes”, diz pesquisadora
Arquiteta e urbanista, professora e pesquisadora da memória urbana de Florianópolis, Eliane Veras da Veiga ressalta que “não existe resposta certa” para a questão sobre derrubar ou não estátuas contraditórias. Para ela, muitos dos protestos nos Estados Unidos são válidos, mas cada caso deve ser avaliado sem deixar de lado o fato de que os monumentos são, também, obras de arte:
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– Vamos estudar com calma, o contexto é mais amplo. Se tirar de cena, vamos estar apagando da história as suas cicatrizes. O povo hoje é como é, por conta dessa trajetória. É interessante identificar elas com novas placas, novos textos, para explicar como foi e como é hoje. Lembrar do que aquela pessoa fez naquela época, a circunstância, explicar o que foi e entender como foi traumático, como isso não cabe mais no século 21.

Mais do que estátuas, Florianópolis carrega até no nome uma história cheia de sangue. Homenageado pelo então governador Hercílio Luz para batizar a cidade que até então se chamava Desterro, o presidente Floriano Peixoto teria ordenado o fuzilamento de 185 pessoas, entre catarinenses e estrangeiros, na Ilha de Anhatomirim. Ordens para sufocar a Revolução Federalista de 1893. Por causa da chacina, até hoje o nome da cidade não é aceito por muitos.
– Se temos estampado na praça algo que fere uma memória de um povo, tem que identificar isso, que esse passado existiu. Apagar isso é apagar a história daquelas pessoas também – finaliza Eliane.