Com o molho de chaves nas mãos, Rosângela (nome fictício) age sob o toque da campainha. A cada som estridente, deixa a cadeira em frente à mesa cheia de documentos colada à parede azul e branca da pequena sala de recepção para abrir a porta de ferro. Repete o ato como um ritual: primeiro chaveia uma porta lateral que dá acesso ao restante da casa para somente depois abrir a principal.

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A maioria dos visitantes, perto de 80 por dia, são detentos em condicional. Diariamente precisam assinar um caderno, conforme compromisso firmado com a Justiça. Ela também é uma detenta. Mas onde está, é chamada de recuperanda. Presa pela Polícia Federal quando acompanhava o marido e um primo numa transação de drogas, decidiu assumir a culpa pelo produto apreendido e foi condenada a 14 anos de prisão. Está há quase sete detida, atualmente cumpre o regime semiaberto.

Diferentemente dos três presídios comuns em que passou, a mineira de Divinópolis é responsável por abrir e fechar o acesso do local onde está presa. Ela é, há um ano e cinco meses, uma das 33 mulheres ocupantes da unidade da Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (Apac) de Itaúna (MG), a 83 quilômetros de Belo Horizonte. Assim como no município de 92 mil habitantes, onde há uma unidade masculina e outra feminina, existem 48 em funcionamento como o mesmo método no país.

Santa Catarina terá uma das próximas a receber uma sede da associação. Voluntários planejam abrir em 2018 a primeira Apac catarinense, no Centro de Florianópolis, para 40 mulheres.

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Ressocialização é superior ao sistema tradicional 

O método é referência em ressocialização de detentos no país. Enquanto no sistema prisional comum a reincidência gira em torno de 70%, nas Apacs mineiras é 25% sob um custo médio de R$ 1 mil mensais por recuperando enquanto nos presídios o valor é mais que o dobro. Dentro dessas unidades não há agente prisional e armas. Algemas somente em situações de risco. As ações são baseadas no diálogo, estudos, trabalho e oração, principalmente pela origem cristã do método.

– Sinto que tenho valor ainda. Descobri aqui dentro os artesanatos que faço para vender. Larguei quatro filhos quando fui presa, fui vê-los só quando vim para cá. Aqui somos acolhidas com carinho, falo que aqui é uma família– fala Rosângela com um sorriso no rosto e a expectativa de quem pretende atingir o regime aberto no ano que vem. 

A casa de dois andares na região central de Itaúna abriga os regimes fechado e semiaberto. As portas de acesso entre uma sala e outra são abertas por recuperandas, indistintamente da pena ou crime que cometeu. Para cuidar da organização interna existe o Conselho de Sinceridade e Solidariedade (CSS), formado apenas por detentas e responsável também pela disciplina. Há três níveis de infrações: leves, médias e graves. Estas últimas motivam a volta imediato da recuperanda para o presídio comum. Isso ocorre, por exemplo, quando é encontrada droga ou celular com uma delas.

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– Há rigor, há regras a serem cumpridas. Mas aqui a principal diferença que existe é que elas perdem direito à liberdade, mas têm direito a tomar banho quente, beber um bebida gelada – destaca a encarregada de segurança da Apac feminina de Itaúna, Katia Dias.

Diariamente, as recuperandas acordam 6h e dormem às 22h. Três vezes por semana, ganham direito de ficarem acordadas até tarde para assistir televisão. Se cometerem alguma infração, podem perder o benefício. O mesmo ocorre com as ligações para a família. São sete minutos disponíveis para falar por semana, além das visitas nos domingos. Durante o dia, participam de atos socializadores, orações, estudos e trabalho. As detentas fazem costura e artesanato. A cada três dias trabalhado, um a menos na pena.

Na cozinha a comida é feita por uma equipe de recuperandas. No dia da visita do DC, que acompanhou uma comitiva da Capital de voluntários e pretensos funcionários em SC, o menu foi arroz, feijão, purê de batata e costela de porco. Nas mesas, garfos e facas, sem restrições como ocorre no presídios do Brasil, onde as peças são de plástico. 

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Gestão baseada no bom comportamento

Na sexta-feira, 24 de novembro, o destino de duas detentas teve rumos diferentes. No meio da tarde, a encarregada de Segurança, Katia Dias, chegou com autorizações judiciais em mãos. A primeira delas decidiu pela volta de uma das recuperandas para o presídio comum. Ela havia cometido uma falta média dois meses antes. O juiz local foi avisado, julgou e decidiu pela remoção. Policiais militares costumeiramente não entram na associação. Mas a presa não reagiu bem à notícia, o que levou a direção a acionar a PM. 

Um homem e uma mulher da corporação foram até o local e acompanharam a saída da detenta sem necessidade de intervenção. As lágrimas das colegas foram interrompidas por outro comunicado de Katia: Lorena Firmino ganhou o direito de progredir do regime fechado para o semiaberto, com saídas temporárias de sete dias a cada 45 dias. A recuperanda está há sete meses na unidade. Dependente do álcool, não sabia ler e escrever até entrar na Apac. 

Hoje, exibe com orgulho os cadernos preenchidos pelas suas letras. Aos 36 anos Lorena tem quatro filhos, dois casais de gêmeos. Os primeiros nasceram quando ela tinha 15 anos.

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– Eu tinha uns “trens” esquisitos, ódio de estar aqui e fui colocando na minha cabeça que estou aqui porque fui eu quem procurei, o juiz não ia me prender sem eu dever. Me conformei. 

 Horta, reciclagem e montadora para trabalhar

Também em Itaúna funciona uma Apac masculina para 185 recuperandos, sendo 90 no regime e 95 restante no semiaberto, parte deles que durante o dia trabalham fora e somente dormem na unidade. No sábado em que a reportagem esteve no local, todos os presos do regime fechado haviam recebido uma punição por ter sido encontrada maconha na unidade. Três deles admitiram envolvimento e foram imediatamente levados para o presídio. O restante recebeu a punição por omissão, mas todos passaram por exame toxicológico, previsto no termo de consentimento assinado por cada um antes de aderir ao método.

Em 18 anos, a Apac teve 84 fugas, com 74 recapturas. Nos fundos do terreno da sede masculina há uma grade, sem muros que dificultariam a fuga. A proposta é dar ao recuperando a opção de escolher.

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– Tem muito rigor no nosso sistema. Eles acordam às 6h, às 7h tem primeiro ato socializador, oração, chamada e avisos. às 8h começa o café, depois vem o trabalho até as 11h30min. Eles voltam às 13h e trabalham até as 17h. À noite tem escola e às 21h30min, nos dias que não tem televisão, eles são recolhidos. Tudo muito regrado– conta o presidente da Apac em Itaúna, Evangelista Lopes.

Dentro do prédio há diferentes opções de trabalho: horta, horto florestal, reciclagem de lixo, montagem de peças de automóveis, marcenaria, serralheria e padaria. Esta última estreita os laços da Apac com a população local. Por dia, os recuperandos fazem 3,5 mil lanches para as escolas da cidade. Na montagem de peças para carros, os detentos trabalham para a subsidiária de um montadora italiana. O salário para cada um gira em torno de R$ 300.

Primeira Apac catarinense prevista para março

A sede da primeira Apac catarinense começa a ganhar forma. Uma casa no Centro de Florianópolis está sendo reformada com a ajuda de voluntários. A estrutura receberá 40 mulheres, a maior delas, 28, no regime fechado. Pela previsão da diretoria da associação na Capital, a inauguração deve ocorrer em 1o de março de 2018.

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– Teremos agora muitas reuniões, principalmente com o futuro corpo de funcionários. Muito estudo porque o método é bastante detalhado e muito cheio de detalhes. Cada um no seu setor, monitor e administradores, a equipe de diretores tem muita responsabilidade, além da reforma da casa que está caminhando, estamos procurando ainda alguns recursos e até março se Deus quiser inauguramos a casa para mulheres – vislumbra Leila Pivatto, presidente da Apac em Florianópolis.

No método, assim como ocorre nos outros Estados onde ele funciona, o governo do Estado banca o custo mensal dos recuperandos. Por isso, no começo de novembro a associação enviou para a Secretaria de Justiça e Cidadania (SJC) uma proposta de convênio. O secretário-adjunto da pasta, Leandro Lima, sinaliza o recebimento e promete apoio ao projeto. Mas, como depende de diferentes avaliações internas, incluindo a apreciação do Ministério Público, não há prazo para uma resposta da secretaria.

– A Apac feminina tem nosso apoio. Estamos acompanhando desde o início da proposta, inclusive a secretaria tem orçamento previsto para isso. A ideia da Apac é positiva, já fui visitar a casa que receberá a unidade – diz Lima.

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Transferência depende da presa

O presidente da Fraternidade Brasileira de Assistência ao Condenado, Valdecir Ferreira, pondera que o início do modelo em SC precisa ser cuidadoso:

– A equipe da Apac precisa se dar conta de que vai estar fazendo uma experiência. A primeira Apac de Florianópolis será, digamos, um projeto-piloto em Santa Catarina. Por isso, cada passo precisa ser meticulosamente pensado, medido, avaliado. Sobretudo para que não haja frustrações da equipe, das recuperandas, das famílias, dos poderes constituídos e o próprio governo.

A decisão de qual detenta vai para a nova unidade depende exclusivamente da própria presa, que precisa mostrar interesse. Depois, o juiz da Vara de Execuções Penais deve expedir decisão nesse sentido. Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SC, Sandro Sell, as informações vindas outros Estados é que o método Apac tem sido efetivo. Ele pondera a discussão sobre a ligação religiosa do modelo, mas aponta a ressocialização como ponto forte:

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– Nos últimos anos houve um grande descrédito sobre a ressocialização. Métodos como esse são a melhor alternativa disponível num sistema que não vai se manter o preso sempre preso. Focam na ideia de que a pessoa pode ser recuperada e viver a vida não violenta são a melhor esperança que temos de recuperar as vidas perdidas dentro do cárcere.