Ter uma boa convivência com os familiares. Estar em paz com Deus. Manter-se fisicamente ativo. Estudar. Estar em contato com a natureza ou com os amigos. Cuidar da saúde. Em conversas com os entrevistados desta matéria, todas as frases anteriores foram citadas, por um ou por outro, como "essenciais": são atividades das quais só mesmo a pandemia de coronavírus – e o decorrente e necessário isolamento social – poderia afastá-los.

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Melhor dizendo, são atividades que não foram totalmente interrompidas, justamente por serem consideradas tão vitais pelas pessoas que as elegeram – mas foram todas modificadas, adaptadas, ressignificadas neste momento tão inédito na vida de tanta gente.

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É claro que a própria legislação brasileira tem uma definição do que é uma atividade essencial: são aqueles serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis de uma comunidade; ou seja, serviços que, em falta, colocam em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população. O conceito foi bastante debatido nas últimas semanas, diante das medidas de quarentena impostas por governos no Brasil e no mundo, que suspenderam diversas atividades e fecharam temporariamente inúmeros estabelecimentos.

Na última semana, em Santa Catarina, largos passos foram dados em direção a uma reabertura: academias, shoppings, centros comerciais, galerias, igrejas, templos e restaurantes puderam voltar a receber o público, mesmo que seguindo uma série de normas e restrições.

Mas o "essencial" ("invisível aos olhos", já diria a esperta raposa criada por Antoine de Saint-Exupéry) carrega também um grau de subjetividade: o que um considera essencial, outro pode considerar banal. E a pandemia de coronavírus fez muita gente reavaliar o quê, exatamente, é essencial em suas vidas.

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– Cada pessoa estabelece critérios individuais para determinar o que é realmente essencial – diz o filósofo, escritor e educador Mario Sergio Cortella. – Essa reflexão está sendo praticamente empurrada para as pessoas. Estamos percebendo que muitas coisas que costumamos ter e manter no nosso dia-a-dia são, na verdade, excessivas. Há uma economia de meios neste momento. A triagem do que de fato é essencial vem sendo imposta pela prática.

– Quando deixamos de fazer uma atividade que fazíamos sempre e percebemos que "o mundo não acabou", nos damos conta de que não estávamos lidando com o essencial – prossegue Cortella. – O essencial é aquilo que, quando interrompido, faz sim com que você ou o mundo acabe. Achávamos que sem determinadas coisas não poderíamos ficar, mas essas coisas já vêm sendo lateralizadas. O que não pode ser adiado? Existe o que é emergencial e o que é urgencial: "emergência" é "já"; "urgência" é "logo". O que é urgente mas não emergente pode ser adiado agora.

O filósofo cita como exemplo o caso das academias, um dos tipos de estabelecimentos cuja reabertura foi autorizada na última semana:

– O exercício físico pode ser uma questão médica, por exemplo, caso em que se torna emergencial; mas muitas vezes esse exercício não precisa ser feito em um local específico. O risco de ir a uma academia, hoje, pode ser maior que o benefício que seria obtido.

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Academias abriram as portas e voltaram a receber o público na última quarta-feira, dia 22 (Foto: Diorgenes Pandini)

A profissional de educação física Vanessa Claro teve que fazer essa conta na prática. Ela narra que, no início, foi um tanto resistente a adaptar seu trabalho à nova realidade:

– Pra mim, o contato ao vivo com o aluno, o olhar clínico para o movimento, sempre norteou minha atuação. A possibilidade de treinar por videoconferência foi uma coisa que eu fui amadurecendo aos longo dos primeiros quinze dias de quarentena. É bom porque eu consigo ver o movimento do aluno em tempo real e já ir corrigindo. Muitos alunos se adaptaram bem, tivemos um bom resultado. Então hoje eu já vejo a videoconferência como uma ferramenta complementar para quando eu for viajar, por exemplo, ou o aluno for viajar; assim eles não precisam deixar de treinar.

– Muitas pessoas praticam atividade física por ter tido ou por ter alguma lesão – Vanessa reflete, a respeito da classificação do exercício físico como "essencial" por muita gente . – A gente consegue fazer com que a pessoa seja mais ativa; ela trabalha melhor, dorme melhor por não ter mais dor. E mesmo as pessoas que não tem nenhuma lesão, a partir do momento em que inserem a atividade física em sua rotina, percebem as mudanças no dia-a-dia: não só no corpo, não só na parte estética, mas também na parte psicológica. Passa a ser um auto-cuidado que faz toda a diferença.

Ela lembra ainda que há pessoas – especialmente idosos – para as quais as academias são também um espaço de socialização, o que influencia a saúde psicológica e a sensação de bem-estar de modo geral. Na verdade, na opinião de Vanessa, o contato com as pessoas é que é o grande diferencial da academia, muito mais que o espaço físico:

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– Eu acredito totalmente que é possível ter uma rotina saudável treinando em casa, mas defendo sempre o treino orientado – ela argumenta. – Acho que, se a pessoa já está acostumada a se exercitar, pode sim treinar sozinha por uma semana, duas, usando os conhecimentos que já adquiriu. Mas, a longo prazo, é preciso um profissional que oriente o treino de acordo com os objetivos e as necessidades de cada um. E, na academia, mesmo quem não tem condições financeiras de contratar um profissional dedicado exclusivamente a ela vai ter a orientação dos professores do lugar. Isso é o mais importante.

As práticas religiosas também se somaram à lista de atividades que precisaram sofrer adaptações nas últimas semanas.

– Na Igreja Católica, nós temos um grande apreço pela vivência da fé em comunidade – explica o padre Vitor Galdino Feller, professor e doutor em teologia e Vigário Geral da Arquidiocese de Florianópolis. – Como você vai ser um bom católico se não frequentar a missa dominical e não receber a eucaristia? Batizados, casamentos, são reuniões, são comunidade. Você não consegue viver sua fé sem esses sacramentos. Mas Jesus Cristo não está presente só na hóstia que você recebe na missa. Ele está presente na Palavra, por exemplo: se você tem uma Bíblia em casa, pode ler, fortalecer seu caráter na Palavra de Deus. Deus está presente em cada irmão, em cada irmã, nas pessoas com quem você convive em casa. E está também dentro do coração de cada um.

– Este é um momento excepcional – admite o religioso. – Nesse contexto nós entendemos que é preciso, sim, permanecermos isolados, para a máxima proteção de todo mundo. É o que indica a racionalidade. Não é impossível, por 15, 20 ou 30 dias, viver sua fé sem ter acesso à missa ou à comunidade. É preciso combinar a fé à razão. Somos seres racionais, afinal de contas. Precisamos viver com racionalidade para não nos deixarmos levar por emoções brutas como o medo, a angústia, o egoísmo. Precisamos da ajuda da filosofia, da sociologia, da psicologia.

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– As religiões que acreditam que existe uma divindade acreditam também que essa divindade está em toda parte; está com você, esteja você onde estiver – argumenta o filósofo Mario Sergio Cortella. – Seria cruel uma divindade que se ausentasse do local onde o fiel está neste momento.

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Templos religiosos foram liberados para receber os fiéis, mediante restrições (Foto: Diorgenes Pandini)

O padre Vitor Galdino Feller diz que, para ele, o essencial se estrutura em alguns pilares:

– Em primeiro lugar, a relação com Deus, com o transcendente – ele enumera. – Para mim, Deus é paz, é minha bússola, aconteça o que acontecer. Em segundo lugar, a convivência com as pessoas. Estamos convivendo muito mais com as mesmas pessoas, já que não saímos de casa. Temos que aprender a conhecer o outro, tolerar certas coisas, dialogar. Em terceiro lugar, o estudo. É importante entender o que está acontecendo, ter uma visão filosófica e sociológica desta quarentena. Muita gente está agindo até mesmo com violência, usando ideologias perigosas.

Cortella já dá uma resposta mais aberta à pergunta sobre o que é essencial: "depende".

– Minha mãe e eu moramos a um quarteirão e meio um do outro, mas ela tem 91 anos, portanto está em isolamento total – exemplifica o filósofo. – Eu ligo para ela e digo "mãe, eu te amo, mas não vou te visitar". É essencial estar com ela? Quando posso estar. Estar com ela neste momento é um risco para ambos. A essencialidade é definida muito mais pelo momento, pela circunstância, do que por cada pessoa.

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Acostumado a trabalhar com mídia televisiva e radiofônica, ele diz que rapidamente as emissoras abriram mão de um certo preciosismo em relação à qualidade de imagem e de som: o que importa mesmo é o conteúdo, justamente a parte mais essencial da mensagem.

– Quem diria que o padrão de qualidade exigido em uma emissora nacional de repente seria tão flexibilizado? – comenta. – Isso tudo forma até mesmo uma nova estética, que pode vir a ser definitivamente incorporada: uma estética que admite mudanças em determinados aspectos da forma enquanto prioriza absolutamente o conteúdo. Nos habituamos rapidamente porque é a única coisa que podemos fazer: é uma aceitação que vem da necessidade, não da convicção.

Em seus universos particulares, as pessoas também precisaram aceitar outras rotinas – e, às vezes, até apreciar o lado bom da mudança:

– Eu não fico me cobrando produtividade o tempo todo: gosto de ter momentos de ócio, fazer coisas por puro lazer; então no começo da quarentena eu aproveitei para me dedicar a esse tipo de atividade – diz Mayara Toledo, que administra uma sapataria ao lado da família. – Vi filmes, séries, li livros que queria ler há muito tempo. Livros de literatura, nada técnico ou ligado à faculdade, por exemplo. Também joguei muita canastra com a minha mãe. (risos)

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De máscaras, ciclistas pedalam por Florianópolis (Foto: Diorgenes Pandini)

A sapataria, um negócio familiar, esteve na lista dos estabelecimentos impactados pelo fechamento do comércio:

– Nós trabalhamos com conserto de sapatos, bolsas, malas; então dependemos das pessoas que chegam na sapataria todo os dias, é um serviço bem presencial – conta Mayara. – Chegamos a pensar em trabalhar de casa, ou com entregas, mas com tudo fechado também começamos a ficar sem os materiais de que precisamos. Paramos no dia 18 de março e só reabrimos no dia 20 de abril. Nos endividamos, não conseguimos pagar direito os funcionários, tem imposto, tem aluguel… Mas paciência. Agora é que vamos correr atrás do prejuízo.

A aceitação da adversidade veio justamente de uma reorganização de prioridades:

– Minha família toda depende exclusivamente da sapataria, então, quando vimos o negócio fechando, deu um desespero sim – confessa Mayara. – Mas ao mesmo tempo nós estabelecemos a saúde e a manutenção das relações familiares como foco. Nos unimos mais, passamos a ter mais paciência uns com os outros.

Mesmo com a reabertura dos estabelecimentos, a profissional de educação física Vanessa Claro pretende continuar afastada das academias por mais algum tempo; também pensando na própria saúde e na das pessoas com quem convive:

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– Estou atendendo alguns alunos ao ar livre, mas evitando ao máximo o contato com outras pessoas, para me proteger, e protegê-los também. Vou continuar treinando em casa e ao ar livre, para observar como vai ser o comportamento das pessoas e o desenvolvimento da curva de contaminação.

O padre Vitor Galdino Feller tem encarado esse período "como uma graça divina", e orientado os outros a tentar ver as coisas dessa forma também:

– É um momento propício para rever valores – justifica o religioso. – Já percebemos que é possível viver com bem menos: não é preciso gastar tanto, correr tanto, fazer tanta coisa. É preciso buscar justamente o essencial.

– Eu não costumava pensar nas relações sociais como tão essenciais, mas percebi que isso é uma coisa que me nutre muito: o contato diário com meus amigos – a assistente administrativa Mayara Toledo cita como exemplo. – Isso me faz muita falta. Então tentei manter esse contato de outras formas, como por meio de videoconferências. Não é a mesma coisa, claro, mas ajuda a passar pelo período de quarentena.

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– "Nada ficou no lugar", como canta Adriana Calcanhotto – brinca Mario Sergio Cortella. – A questão é se esse novo modo de viver vai perdurar após o encerramento da parte mais tenebrosa da pandemia. Algumas coisas devem permanecer, outras não. O escritor Mark Twain, afinal, dizia que não adianta tentar jogar antigos hábitos pela janela: eles precisam ser empurrados pela escada, forçosamente, degrau por degrau.