O caso da professora assassinada a tiros pelo ex-companheiro em uma creche de Florianópolis, na quinta-feira (24), na altura em que ela contava com uma medida protetiva de urgência, deu força à discussão sobre a efetividade desse apoio legal em garantir a segurança de vítimas de violência doméstica. Para especialistas, oferecer só a medida protetiva é uma estratégia insuficiente para isso.
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A advogada Daniela Felix, que integra a comissão direitos humanos da seccional catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SC), diz que a medida protetiva, um tipo de ordem judicial previsto pela Lei Maria da Penha, precisa estar aliada à criação de outras políticas públicas para conter a violência.
— O problema não é a lei, mas um modelo de sociedade patriarcal, machista e misógino. O que precisamos é de política de proteção efetiva às mulheres vítimas de violência, com verbas públicas suficientes e programas assistenciais que acolham as vítimas e tratem os agressores — afirma.
Já a advogada Tammy Fortunato, especialista em questões de gênero, explica que a medida foi criada para proteger a mulher de futuras agressões de forma rápida e eficaz, além de afastar o agressor da vítima, mas reforça que o despacho legal não garante um apoio incondicional.
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— Muitas vezes, essas mulheres ficam com a protetiva em mãos, mas acham que aquilo garante uma espécie de cápsula protetora, como se, com aquele papel, o homem não fosse se aproximar. A gente sabe que, na verdade, essa medida protetiva é só um papel. Em caso de descumprimento, ela tem que acionar a polícia — diz Fortunato.
Em Santa Catarina, o “botão do pânico” do aplicativo “PMSC Cidadão” serve para acionar socorro caso uma medida protetiva seja violada. E a pessoa que descumpri-la deve ser presa, reforça Fortunato.
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Para a delegada Patrícia Zimmermann, coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso de Santa Catarina (DPCAMIs), as vítimas com medidas protetivas devem “redobrar a atenção” em certos momentos.
— A gente tem visto que muitos feminicídios ocorrem quando estão no rompimento da relação, ou quando a mulher vai constituir uma nova relação, ou na questão de disputa de bens — relata.
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No ocasião da morte da professora Alessandra Abdalla, a 50ª vítima de feminicídio no Estado somente em 2022, a medida protetiva foi deferida no dia seguinte ao que foi solicitada. Segundo a delegada Michele Alves, chefe da Diretoria de Polícia da Grande Florianópolis (DPGF), não houve tempo hábil para apreender a arma do suspeito, que não aceitava o fim do relacionamento.
— Ela estava em conversa com toda a equipe da delegacia, que [concluiu que] haveria a necessidade de representação pela busca da arma, que era o instrumento com que ele estava a ameaçando de morte. Infelizmente, não teve tempo hábil no deferimento dessa medida — lamenta a delegada.
Além de suspender ou restringir a posse ou perto de armas do agressor, a medida protetiva também tem previsão para afastar ele da casa; proibi-lo de se aproximar e de entrar em contato com a vítima e seus familiares, além de frequentar determinados lugares; e restringir ou suspender visitas dele aos filhos.
A ordem judicial ainda pode fornecer alimentação à vítima ou dependentes, de modo que a proteção leve em conta a preservação da saúde física, mental e patrimonial dela. Também pela lei, a medida protetiva de urgência deve ser concedida pela Justiça em até 48 horas após o pedido — só de janeiro a outubro deste ano, houve mais de 19 mil solicitações ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).
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A advogada Tammy Fortunato diz considerar eficaz a lei que trata da medida protetiva, mas pondera ainda faltar entendimento sobre ela. A especialista se baseia em uma pesquisa do Instituto DataSenado de novembro de 2021 que mostra que 81% das brasileiras afirmam conhecer pouco ou nada sobre o instrumento legal.
Por conta disso, a advogada relata acreditar que a educação também pode ser um instrumento potente de transformação, para tornar o assunto mais acessível. Uma lei recente, a 14.164, de 2021, até prevê a reflexão sobre violência contra a mulher nas escolas, mas precisa ser mais explorada, diz Fortunato.
— A gente vai trabalhar na prevenção, e, assim, um dia a gente vai conseguir erradicar essas violências. As crianças vão levar conhecimento para as casas, as mães verão tarefas escolares junto com as crianças e adolescentes e, por tabela, vão acabar conhecendo também a lei — afirma a especialista, indo ao encontro do que argumenta a também advogada Daniela Felix sobre a discussão em âmbito escolar.
— O ensino sobre educação sexual e gênero nas escolas é fundamental para que crianças e adolescentes tenham autonomia sobre seus corpos e aprendam a identificar sinais de violências. E isso são bagagens para a vida, que evitam ou evitarão relações abusivas ou criminosas — diz Felix.
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O que são medidas protetivas?
As medidas protetivas são mecanismos previstos na Lei Maria da Penha para proteger mulheres que sofrem ameaça ou violência física na relação familiar. Entre as providências, a vítima pode solicitar que o agressor não se aproxime dela, filhos ou de outros familiares.
Violência doméstica
Segundo a Lei Maria da Penha, a violência doméstica contra a mulher envolve qualquer ação baseada no gênero – ou seja, a mulher sofre algum tipo de violência apenas pelo fato de ser mulher. Essa violência pode ser dos seguintes tipos, já de acordo com o Instituto Maria da Penha:
- Violência física: qualquer ação que ofenda a integridade ou a saúde corporal da mulher. Exemplos: espancamentos, estrangulamento, cortes, sacudidas, entre outros;
- Violência psicológica: qualquer ação que cause dano emocional e diminuição de autoestima; prejudique e perturbe o desenvolvimento da mulher ou tente degradar e controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões. Exemplos: ameaça, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, entre outros;
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- Violência sexual: qualquer ação que obrigue a vítima a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada. Exemplos: estupro, impedir uso de contraceptivos, forçar prostituição, entre outros;
- Violência patrimonial: qualquer ação que configure retenção ou destruição de objetos, instrumentos de trabalho, documentos, bens e valores da vítima. Exemplos: controle do dinheiro, destruição de documentos, estelionato, deixar de pagar pensão alimentícia, entre outros;
- Violência moral: qualquer ação que configure calúnia, difamação e injúria. Exemplos: acusar a mulher de traição, expor a vida íntima, desvalorizar a vítima pelo seu modo de se vestir, entre outros.
Como pedir ajuda
- Em uma situação emergencial: disque 190. É o número de telefone da Polícia Militar que deve ser acionado em casos de necessidade imediata ou socorro rápido;
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- Delegacia virtual: https://delegaciavirtual.sc.gov.br/;
- Central de Atendimento à Mulher: 180. O Ligue 180 presta uma escuta e acolhida às mulheres em situação de violência. O serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes, bem como reclamações, sugestões ou elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento. A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. São atendidas todas as pessoas que ligam relatando eventos de violência contra a mulher. O Ligue 180 atende todo o território nacional e também pode ser acessado em outros países;
- Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos: Dá para denunciar pelo site da Ouvidora Nacional dos Direitos Humanos, do Governo Federal através do link: https://www.gov.br/mdh/pt-br/ondh.
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