Quantas vezes já se viu algum motorista falando ao celular enquanto dobrava a esquina, apenas uma das mãos ao volante, e nada se fez? Em quantas oportunidades se encontrou um tablete de margarina com o prazo de validade vencido, exposto no mercado, mas não se chamou o gerente para recolher o alimento?

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Quantas vezes já se atravessou uma avenida fora da faixa de segurança?

Ainda sob o impacto da tragédia que matou pelo menos 236 jovens em Santa Maria, especialistas consultados por ZH apontam que falta atitude ao brasileiro. Não sugerem, é óbvio, que cada pessoa se invista em fiscal do vizinho. Mas a passividade pode ser fatal. Abdicar do exercício da cidadania é compactuar com a negligência, o desapego à lei, a corrupção. É estimular a burla dos gananciosos que descumprem normas na busca do lucro fácil, como forrar a boate com uma espuma barata que expele fumaça venenosa se pegar fogo.

Um dos mais destacados antropólogos, Roberto DaMatta alerta que a sociedade brasileira não é proativa – no sentido de exigir seus direitos e defender as causas públicas. Define-a como “reativa”, age de forma solidária e emocionada quando sobrevém a destruição e o luto.

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– Deixa que chegue ao pior para tomar uma medida, as quais são sempre insatisfatórias – lamenta.

DaMatta diz que o Brasil contraiu um pacto com o ente apelidado de Sobrenatural de Almeida, segundo o qual “não vai dar nada”, “nada acontecerá de ruim” e pequenas transgressões serão perdoadas. É por isso que se dirige acima do limite de velocidade, não se é cordial nas filas, solta-se sputniks em uma boate superlotada com arquitetura de gaiola.

– Eu, que já estou no terceiro tempo da vida (76 anos), fico abismado com a atração dos jovens pelo perigo – comenta.

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Estado recebe toda a responsabilidade

Autor de livros como Carnavais, malandros e heróis, DaMatta indaga: o que aconteceria, diante do conjunto de irresponsabilidades que precedeu o incêndio em Santa Maria, se a boate Kiss estivesse num país como o Japão? Aposta que haveria suicídios, conforme o código de honra dos samurais. Na Argentina, após o fogo que matou 194 jovens na República Cromañón em 2004, funcionários e fiscais públicos foram condenados à prisão. Para o antropólogo, os desdobramentos aqui são imprevisíveis: a impunidade é outro mal brasileiro.

– Como pode ter um megaevento desses, com banda num espaço fechado, e com pirotecnia?

À indulgência do brasileiro, o sociólogo Francisco de Oliveira agrega outro componente de risco. É a mania de se esperar que governos resolvam tudo. Professor emérito da Universidade de São Paulo, adverte que o Estado “está despreparado”, não se renovou para atender a uma sociedade que evoluiu de rural para urbana e industrial.

– O Estado está desaparelhado, o único que faz é correr atrás do prejuízo – ressalta.

Um dos fundadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Chico Oliveira, como é chamado entre os seus pares, desanima-se com as perspectivas. Não vislumbra o que denomina de “remédio” a curto prazo. A inércia do cidadão e a inépcia das autoridades cimentaram uma montanha pesada demais para ser removida.

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– Infelizmente, a passividade é uma característica da sociedade, enquanto as instituições estão superadas. Temos um governo que não atua, não tem caráter preventivo, e isso vai continuar assim – diz Oliveira.

Pouco se pensa no coletivo

Além da omissão do cidadão e da incapacidade permissiva do Estado, há outro ingrediente preocupante: não se assume as próprias responsabilidades. Para o brasileiro, o diabo é sempre o próximo, o cientista político e sociólogo Emil Sobottka. Atribui aos outros posturas negativas que tem, mas jamais admite.

– Experimente chamar a atenção de um motorista que está falando no celular. Ele certamente vai lhe destratar – previne Sobottka.

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Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Sobottka pesquisa as sociedades da Alemanha, Holanda e Suécia. Entende que o brasileiro não deve chegar ao extremo dos prussianos, que colocam o dever acima de tudo. Nem exagerar como certos norte-americanos, que adoram dedurar os vizinhos à polícia em vez de conversar antes. Sobottka prega o equilíbrio, mas sobretudo cobra mais iniciativa.

– As pessoas em geral precisam assumir as suas responsabilidades. Andar dentro das regras – afirma.

Sobottka percebe que interesses privados são “fortemente representados” no Brasil. Há bolsões que defendem suas causas – e seus lucros – inclusive pisoteando no bem comum. Porém, nota que os interesses públicos, como a segurança, a educação e o trânsito, são relegados.

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– A sociedade civil organizada é muito fraca, frágil, quando o assunto é o interesse público – observa.

O que mais apavora o secretário-executivo da organização Contas Abertas, Gil Castello Branco, é a irresponsabilidade compartilhada entre os setores público e privado. Especializado em fiscalizar governos, cita a parcela de empresários que opta por soluções “fáceis e baratas”, almejando somente o lucro e expondo vidas a perigo. Critica governos ineptos, tolerantes com erros e que não fiscalizam fraudes nem impedem a rotina de logros contra a população.

– Há, no Brasil, uma relação promíscua entre a iniciativa privada e o governo – acusa Castello Branco.

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O dirigente da Contas Abertas também se insurge contra a lassidão de não se aprender com as lições que vêm de fora. Recorda que o fogo na República Cromagñon, em Buenos Aires, não serviu de alerta para uma realidade preponderante no Brasil: boates em formato de arapuca, sem prevenção contra sinistros, que podem se transformar em câmaras de extermínio.

Castello Branco teme que o ciclo de irresponsabilidades não será interrompido com o episódio de Santa Maria. Gostaria de estar equivocado, mas acredita que as autoridades vão prometer recursos e mais rigor nas leis, como sempre fazem. E que tudo voltará a ser como antes quando passar a comoção.

– Prevalecem a incompetência e a irresponsabilidade – enfatiza.

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