Há quase 20 anos, a hoje neuropsicopedagoga Kika Feier, de 45, ouviu de uma vizinha, sem querer, que sua filha, ainda pequena, poderia ser autista. A suposição veio depois de a menina ganhar uma boneca de presente, deixar o brinquedo de lado e se divertir com o papel que embrulhava a lembrança. Com a insistência da vizinha, que era enfermeira, e da família, Kika ouviu o diagnóstico da boca de um médico: sua Cibele era, de fato, autista. E ponto final. O profissional não explicou para ela mais detalhes da condição, o que era o autismo e o que ela deveria fazer.

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— Foi assustador. Procurei outros médicos, e muitos ainda diziam que ela não era autista. Diziam que ela era apenas “retardada” — contou Kika.

Segundo a mãe, o desenvolvimento da menina foi muito precoce. Com um ano, já andava por todo lugar com sua motoquinha. Aprendia com facilidade. Até o primeiro dentinho nasceu antes que o normal. Cibele falava normalmente (muitas crianças autistas podem demorar a começar a falar ou não falam). No entanto, ela não se comunicava. Por conta disso, Kika sentia que existia alguma diferença. Mas que criança “retardada” não era – e nunca será – a condição.

A tristeza: A mãe ainda foi julgada por um segundo profissional. Ele disse que, para quem acabou de saber que seu filho tem autismo, ela aparentava “estar muito bem”.

— Eu chorei por três dias seguidos. Na época não tinha internet para procurar, tinham poucas informações e nenhum profissional sequer me sugeriu um livro. Só pensei: bola para frente que preciso saber o que fazer agora — detalhou Kika.

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A confirmação: Foi com quatro anos e meio que Cibele foi diagnosticada com autismo de alto funcionamento pelos profissionais da Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE). Kika então traçou uma jornada para a família que incluía melhorar a qualidade de vida de todos e garantir inclusão para a pequena.

Seguindo em frente: Cibele estudou até o 8º ano no ensino fundamental em escola regular — Kika, na época, pagava duas mensalidades para garantir o professor auxiliar para a menina, coisa que, hoje, é proibida. No contraturno escolar a menina ia para Apae.

Quando nova, Cibele adorava desenhar e pintar. A mãe conta que chegou a vender 100 quadros pintados pela menina prodígio.

— Mas na adolescência, depois de encerrar o 8º ano, Cibele tomou muita medicação. Ela tinha um quadro mais psiquiátrico do que de fato autista. Procurei ajuda e vi que o autista precisa mais de terapia. Claro, em alguns casos, de medicação. Mas o principal era a terapia. E busquei alternativas — observou.

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Segundas chances Kika diminuiu as medicações de Cibele. Teve dias pesados, de querer jogar a toalha, é verdade. Mas está mais feliz do que nunca com sua filha verdadeiramente autista. Uma das grandes razões para isso é que a família descobriu no surfe uma forma de terapia — em que Cibele consegue liberar suas energias — e lazer.

Kika é uma das voluntárias no projeto Onda Azul, que ensina crianças e jovens autistas a surfar na praia do Santinho de forma gratuita, a cada duas semanas.O grupo serve também como apoio. Para os filhos, que se sentem incluídos e praticam uma atividade prazerosa, e para os pais, que encontram outras famílias que passam pela mesma situação e que se confortam e ajudam umas às outras.

— Minha filha não mudou de um quadro grave para um mais leve. Mas cada melhora, cada conquista, cada novidade, é comemorada — diz a mãe.

Em busca de uma de rede de cuidados

A servidora pública Daniela Garcia Prad Gomes, 43, também precisou se recuperar do choque inicial do diagnóstico de seu menino, Kauan, hoje com nove anos. Foi logo no primeiro mês de escolinha, quando ele tinha dois anos e sete meses, que a direção do colégio chamou por Daniela para falar que a criança, possivelmente, teria autismo, e que ele deveria passar pela avaliação de um profissional.

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— Na hora eu não gostei, porque eles falaram para mim como se fosse uma certeza. A aceitação inicial pode ser muito difícil. Primeiro vem a negação. Mas você começar a ler, ver histórias de superação, de autistas que trabalham, que têm profissão, relacionamentos. O conhecimento faz toda a diferença — revela Daniela.

A servidora pública se emociona ao contar toda a trajetória de Kauan. Faz questão que ele estude no ensino regular e comemora todos os passos conquistados. Ajuda a estimular suas predileções.

Atualmente, o menino é vidrado pela história de dubladores de desenhos animados. Conhece o nome de todos. Dani a matriculou num curso de desenho, porque, antes de dublar, é preciso aprender a desenhar, explicou ao filho. E assim, ela encontrou mais uma forma de inclui-lo em uma atividade. O diagnóstico inicial, que soou tão assustador, ficou no passado. O diagnóstico agora está em uma crescente mudança: para melhor.

Importância do atendimento

O psiquiatra e diretor do departamento infantil da Associação Catarinense de Psiquiatria, Marcelo Calcagno Reinhardt, explica que o cuidado inicia ao passar o diagnóstico para a família. Para ele, uma série de questões precisariam ser analisadas, como o grau do autismo, antes de uma mãe receber uma notícia como “talvez seu filho nunca fale” ou “talvez ele não tenha função alguma”.

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— Não só dar o diagnóstico, mas falar para a família toda a rede que auxílio que se pode conseguir, saber que é possível trabalhar em várias frentes: não só a minha, que é no caso a medicação, mas com psicólogos, pedagogas, psicopedagogas, fonos. Um trabalho em equipe, em harmonia, é possível sanar algumas dificuldades — explicou o psiquiatra.

Daniela, por exemplo, trabalha com Kauan em todas as frentes e especialidades. O menino também encontrou na natação uma forma de lazer.

— A gente não sabe dizer ao certo o que dá certo: se psicopedagoga, fono, as terapias. É um conjunto dessas atividades, com o apoio da família — complementa Daniela.

É por exigir uma rede de atendimento profissional tão ampla que o autismo se torna um dos transtornos mais caros de se tratar. Na Associação de Pais e Amigos de Autista (AMA), por exemplo, que oferece serviços como psicóloga, fono e pedagogas de graça, há uma fila de espera de 100 crianças com autismo. Hoje, 70 são atendidas.

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— Indicamos a buscar todos os serviços. Procurar os atendimentos gratuitos nas universidades, na Fundação Catarinense de Educação Especial. Mas é muito importante este trabalho completo — ressalta o psiquiatra.

O que é o autismo

O Transtorno do Espectro Autista reúne todos os distúrbios, como o autista, desintegrativo da infância, generalizado do desenvolvimento não-especificado (PDD-NOS) e Síndrome de Asperger.

É um conjunto de alterações e transtornos no desenvolvimento de uma criança marcado por algumas características principais como dificuldade em comunicação e interação social; dificuldade na fala ou comunicação, e comportamento restritivo (com foco numa coisa específica) e repetitivo.