Logo após o aniversário de um ano em junho da Lei dos Domésticos — que garante avanços como uma série de benefícios para esses trabalhadores — relatos de abuso de patrões publicados pela ex-empregada doméstica Joyce Fernandes em sua página no Facebook mostram que ainda há muito a fazer para que a relação entre empregados domésticos e seus empregadores melhore.

Continua depois da publicidade

Moradora de Santos, em São Paulo, Joyce, que hoje é professora de História, criou a hashtag #EuEmpregadaDomestica e uma página com o mesmo nome no Facebook para divulgar relatos seus e enviados por empregadas domésticas. Nesta onda de publicações nas redes sociais, profissionais denunciam situações constrangedoras que enfrentam no dia a dia.

Selecionamos situações publicadas em redes sociais com a hashtag para análise do juiz do trabalho e presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Amatra), Rodrigo Trindade de Souza. Ao ler os relatos, ele se surpreendeu com as situações e destacou que a desvalorização dos trabalhadores domésticos ainda está ligada à tradição escravista de não reconhecer o direito do trabalhador.

— Quando a gente fala de trabalho doméstico, a relação é muito próxima, com mais intimidade. Se costuma permitir um número maior de tarefas a serem direcionadas e distribuídas pelo empregador. Facilita que haja descumprimento de deveres — avalia o juiz.

Continua depois da publicidade

Precisa comunicar o descontentamento

Para combater essas situações, o primeiro passo, orienta o juiz, é o de demonstrar o descontentamento para o patrão, dizer que se sente diminuído:

— Não há problema nenhum em dizer isso. Caso o empregador se negue a mudar e a alterar a rotina de trabalho, aí o trabalhador deve procurar a Justiça.

A presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Creuza Maria Oliveira, 59 anos, ressalta a importância de o empregado ter coragem para denunciar situações de abuso já que, segundo ela, o trabalhador doméstico sempre passou por isso. Atualmente, é mais fácil tornar pública a insatisfação do trabalhador, principalmente pelas redes sociais.

Continua depois da publicidade

— Provar lá dentro da Justiça é que é difícil, porque esses abusos acontecem dentro do âmbito privado. Sabemos que acontecem casos de violência física, palavras racistas e todo o tipo de violência verbal. Todas nós já passamos por isso — afirma Creuza.

Confira o Espaço do Trabalhador no Facebook

Acompanhe as notícias da Grande Florianópolis

A ANÁLISE DO JUIZ

Abaixo, situações compartilhadas por empregadas domésticas nas redes sociais e as avaliações feitas pelo juiz Rodrigo Trindade de Souza. Os relatos foram editados.

1) “Estudar pra quê? Seus filhos têm emprego garantido aqui em casa no futuro.”

Juiz Rodrigo Trindade de Souza: É uma ideia equivocada da patroa, mas não é suficiente para provocar alguma indenização por dano moral.

Continua depois da publicidade

2) “Você foi contratada para cozinhar para a minha família, e não para você. Traga marmita e um par de talheres.” “Você está comendo bolo? Tudo que fica nessa geladeira é da casa. Dá esse bolo aqui (patroa pega o bolo e joga no lixo).”

Juiz: Não existe nada na lei que obrigue o empregador a fornecer a refeição para o empregado doméstico. Porém, se ele fornecer, não pode cobrar nem descontar do salário. Isso deve ser acordado no momento da contratação. A refeição pode ser diferenciada, desde que seja suficiente e de qualidade. Se não for, comete uma falta passível a danos morais. Tirar o alimento da empregada e jogar no lixo cria um constrangimento. Só esse caso isolado talvez não seja suficiente para indenização, mas, se a postura de buscar a disciplina aos custos da dignidade de trabalhadores se repetir, pode-se buscar reparação.

3) “Quando a patroa saía, o patrão ficava andando de cueca pela casa. Se tocava e dizia que eu tinha ‘cara de vagabunda’.”

Continua depois da publicidade

Juiz: É claramente um ato de assédio sexual. É postura criminosa passível de indenização por danos morais por assédio sexual. A funcionária deve buscar indenização e reconhecer como extinto o seu contrato de trabalho por culpa do empregador. Quando o empregador comete falta grave, o trabalhador pode fazer a despedida indireta, buscando o ganho de todos os direitos da dispensa sem justa causa.

4) “Um dos dias mais constrangedores da minha vida foi ter que ir uniformizada de babá a uma festa de casamento. Além da noiva, somente eu vestia branco, para deixar claro para os presentes que eu não era convidada.”

Juiz: A lei não estabelece obrigatoriedade do uso do uniforme nem há proibição para que impeça o empregador de exigi-lo. Deve haver um acordo prévio. A circunstância de usar o uniforme fora do ambiente de trabalho, se isso é constrangedor para o empregado, se ele entender que há vontade de constranger e se ele de fato se sentir assim, é inadequada. Dependendo da análise da situação, de provas e das circunstâncias em que ocorreu, é passível de produção de danos morais.

Continua depois da publicidade

5) “Fui acusada de fazer ligações telefônicas sem autorização. Respondi que não, pedi para ligar para o número para comprovar, mas a patroa disse que iria me dispensar e descontar as ligações.”

Juiz: A lei não prevê essa situação e, para uma ação, dependeria da interpretação do juiz. De forma isolada, é inadequada. Se for rotina de constrangimento, é passível de recebimento de indenização. Apenas a desconfiança da patroa é insuficiente para que se faça desconto da remuneração. Também não há motivo para dispensa com justa causa. Cabe ao empregador comprovar sua desconfiança, não à funcionária tentar provar sua inocência. Para que haja desconto no salário, é preciso acordo prévio de que a empregada não poderia fazer ligações. Nessa situação, se deve buscar, no mínimo, o reconhecimento de que a dispensa não foi por justa causa. Primeiro, a empregada deve pedir amigavelmente e, se houver negativa, entrar com ação. Assim, o trabalhador tem direito a receber a multa pelo FGTS e aviso prévio.

6) “Minha mãe e eu fomos despedidas por quebrar um baleiro.”

Juiz: Não me parece motivo para dispensa por justa causa, se foi um fato isolado e não houve vontade de produzir o dano. O trabalhador pode ir buscar judicialmente a reversão da dispensa por justa causa, se ela foi feita.

Continua depois da publicidade

BUSQUE AJUDA

Ao se deparar com uma situação de abuso, é preciso buscar auxílio com o sindicato, que oferece assistência jurídica gratuita. Não é recomendado, conforme o juiz, que o trabalhador vá direto à Justiça do Trabalho. Deve procurar antes um advogado para estar consciente dos seus direitos.

EM FLORIANÓPOLIS: busque orientação no Sindicato dos Empregados Domésticos da Grande Florianópolis, que fica na Rua Gerônimo Coelho, 170, 4º andar, sala 406, Centro da Capital. O atendimento é das 8h às 12h e das 13h às 17h. Os telefones são: (48) 3224-3786 ou 3025-3786.