No Brasil, um em cada dez estagiários apresentou problemas de saúde mental relacionados ao trabalho atual ou anterior. O dado é de um levantamento feito pela Companhia de Estágios, que analisou o perfil do estagiário no país em 2024.
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O levantamento ouviu 6,2 mil jovens. Dentre eles, 10% alegou já ter desenvolvido problemas de saúde mental decorrentes do estágio. Jéssica Gondim, gerente de projetos da Companhia de Estágios, acredita que isso acontece por dois principais motivos: a pouca maturidade emocional dos estagiários e a falta de preparação de empregadores para orientar e desenvolver os profissionais que estão no início da carreira.
— Primeiramente, a idade dos estagiários é um fator crucial, estamos falando da Geração Z, pessoas nascidas entre 1995 e 2010, e muitos deles podem não possuir a maturidade emocional necessária para lidar com os desafios do mundo corporativo. Para eles, prazos, horários e responsabilidades podem representar uma novidade. Além disso, as empresas e gestores podem não estar totalmente preparados para orientar e desenvolver esses estagiários adequadamente — afirma.
Afastamentos e demissões
Dos participantes da pesquisa, 35% alegam ter tido que se afastar do estágio por conta de doenças mentais. Destes, 56% pediram demissão.
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É o caso de Laura Oliveira*, de 22 anos, estudante de jornalismo em uma universidade de Santa Catarina. Em julho do ano passado, Laura* começou a estagiar em uma empresa de comunicação, de onde se demitiu seis meses depois, no início de dezembro.
— Me demiti por esgotamento mental. No início, estava tudo tranquilo. Eles me apoiavam bastante. Eu sabia que ia ter bastante demanda, mas com o passar do tempo ela só foi aumentando. Chegou a um ponto em que eu estava levando o trabalho para casa porque eu não conseguia terminar todas as minhas demandas enquanto eu estava lá — conta.
O estágio era de 30 horas semanais, com seis horas presenciais por dia. Segundo Laura*, à medida que as demandas iam aumentando, elas iam ficando mais complexas, além de se tornar responsável pelas demandas de outras pessoas.
Ela relata que sofreu também com o micromanagement — em português micro gerência — da empresa, que é quando o empregador acompanha e controla de perto todas as ações dos colaboradores relacionadas às suas tarefas de trabalho.
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— Eram muitas reuniões controlando cada centímetro do que eu fazia, e isso aumentava muito a pressão, porque se tinha alguma coisa atrasada eu era chamada atenção na frente do resto da equipe. Isso me incomodava bastante — conta.
Para Brenda Giuriolo, especialista em inteligência emocional e saúde mental, o impacto de começar em um lugar novo é muito maior para jovens que estão no início da vida profissional.
— Qualquer pessoa que estiver num processo de transição de papéis vai sentir muito mais insegurança e medo, ou seja, mais necessidade de direcionamento e acolhimento. Quando a gente está falando de um jovem que está começando a sua carreira profissional, ele não está só lidando com uma nova profissão, mas com todas as incertezas, medos e receios, porque é um ambiente novo. As pessoas se comportam de uma forma diferente e ainda não existe um referencial ou uma experiência — explica.
Brenda, que é pós-graduada em Gestão de Recursos Humanos, diz também que é normal se sentir inseguro em um período de adaptação, mas que há a questão geracional de que os jovens “têm menos resiliência e inteligência emocional” para lidar com os desafios corporativos.
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Laura*, por exemplo, sentia que nada do que fazia no estágio era suficiente.
— Se eu tentava fazer alguma coisa diferente do que eles pediam, eles reclamavam que não estava da forma que eles tinham pedido. Se eu fazia como eles pediam, eles reclamavam que eu não estava inovando. Um dia, eles me falaram que eu tinha perdido o brilho no olho que eu tinha quando comecei a trabalhar lá — afirma.
Laura* foi diagnosticada com ansiedade há cerca de quatro anos, em 2020. Um dia, no trabalho, ela teve uma crise após a chefe fazer uma “pressão” para que ela entregasse as demandas que estavam atrasadas.
— Eu tive essa crise de ansiedade lá dentro que me incapacitou e eu tive que ir embora. No dia seguinte, minha chefe me chamou e fez umas perguntas bastante invasivas relacionadas à minha saúde mental. Depois disso, eu senti que teve uma certa mudança. Parece que as minhas cobranças aumentaram e eu me sentia como se tivesse um alvo nas minhas costas. Todas as demandas que não davam certo iam para mim — relata.
Em uma reunião de feedback, a chefe de Laura* sugeriu que ela revisse suas prioridades para ver se ela realmente tinha a capacidade de aguentar um estágio com aquela carga horária e com aquele nível de demanda.
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— Ela falou isso num tom como se estivesse preocupada comigo, mas também com um tom de “não queremos ser responsáveis pelos seus problemas de saúde mental”, sendo que muito do meu esgotamento mental veio dali — afirma.
Cerca de 10 dias depois, Laura* pediu demissão. Ela chegou, inclusive, a ter um princípio de burnout, síndrome reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que, segundo o Ministério da Saúde, gera sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações desgastantes e excesso de trabalho.
— Eu fiquei praticamente de cama por uns dias porque eu estava passando muito mal, vomitando e com muita dor de cabeça. Eu estava exausta — afirma.
Antes de se demitir, Laura* comunicou ao RH da empresa que estava saindo porque não se sentia mais confortável no ambiente. Ela também falou um pouco sobre as demandas e cobranças excessivas que experienciou.
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Brenda aponta que, nestas situações, o ideal é que o profissional faça o que Laura* fez: leve adiante a reclamação.
— Quando existe cobrança excessiva ou um comportamento disfuncional por parte de um líder ou de um colega, isso precisa ser relatado, e talvez levado para um canal de ética. O profissional precisa levar adiante aquela situação para que aquele ato não continue acontecendo, porque talvez não seja só com o estagiário — afirma.
“Limite de saúde mental”
Larissa Pereira*, que tem 24 anos e está prestes se formar na graduação, traz um relato parecido. Em 2021, Larissa* diz que chegou ao “limite de saúde mental”.
Com poucas matérias na faculdade, ela resolveu realizar dois estágios simultâneos: um com seis horas presenciais, em uma empresa da sua área, e outro em uma divisão vinculada à universidade, que exigia que ela trabalhasse apenas por demanda, de forma remota.
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Na empresa, ela inicialmente fazia o horário das 6h às 11h. Os três turnos (manhã, tarde e noite) possuíam supervisores diferentes. Um dia, as cobranças, que eram muitas, levaram Larissa* a ter uma crise de gastrite, o que só acontece quando ela está muito nervosa, relata.
— Eu comuniquei ao supervisor sobre a crise, e de início foi tranquilo. Eu já estava perto do horário de terminar, então ele só suspendeu o meu turno — conta.
Ela ficou três dias afastadas do estágio devido à crise e, quando retornou, o supervisor a recebeu bem. Mas, posteriormente, ela teve que trocar de turno, e passou a trabalhar das 11h às 16h, com outra supervisora.
— Ela soube do episódio e eu sentia que tinha ficado marcada para ela. Uma das estagiárias da época falava que era nítido a diferença de tratamento entre a gente. Enquanto ela desenvolvia uma certa demanda por um tempo, eu já tinha que estar na minha terceira. Era uma cobrança muito forte — afirma.
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Depois disso, Larissa* relata que crises de ansiedade começaram a se tornar frequentes, o que antes ela não costumava ter.
— Teve vários dias em que, assim que eu saía, eu começava a ter crises de ansiedade e tinha que ir direto para a UPA, tomar remédio na veia — relata.
Larissa* diz que decidiu se demitir após um episódio em que estava com febre, e a supervisora ignorou seu estado de saúde para que ela continuasse trabalhando.
— Eu estava com medo, porque sentia que estava febril e era no pós pandemia, em 2021. A supervisora me tocou e falou “não, você não está com febre”.
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A estagiária começou a sentir calafrios, mas só checou a temperatura corporal depois que outra funcionária a recomendou que utilizasse o kit de primeiro socorros da empresa para medir a febre. Ela estava com a temperatura elevada, e outro funcionário a liberou. Não era covid, mas ela estava doente e teve que se afastar por 10 dias.
Larissa* diz ter se oferecido para dar andamento a algumas demandas de casa, de forma remota, e foi quando a supervisora teria dado a entender que Larissa* havia exagerado no dia. Depois disso, ela se demitiu do estágio.
— Eu não aguentei por mais de dois meses. No meu currículo, isso é muito raro. Eu comecei em julho e em agosto já estava fora — conclui.
No outro estágio, que era homeoffice e vinculado à universidade, o trabalho de Larissa* era desmerecido pelo supervisor, segundo ela. Lá, ela atuava principalmente como social media, fazendo publicações para redes sociais. Lá, ela também ficou somente por dois meses.
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— Ele dizia: “pelo amor de Deus, isso não é nem um design decente. É uma ‘artezinha'”. Ele desdenhava totalmente o meu trabalho, por mais que eu fosse uma estagiária — conta.
Além dos comentários, Larissa* descobriu que o supervisor pedia para ela fazer vários materiais gráficos que, em teoria, eram para o estágio, mas na realidade eram para trabalhos que ele mesmo fazia por fora, para outras instituições.
— Ele não necessariamente me falava que era para o estágio, mas me passava as demandas. Teve várias vezes que eu ficava de madrugada fazendo os conteúdos extras que eu achava que eram para o estágio, mas eram para ele. Chegou a acontecer de eu ir “virada” para o outro estágio — comenta.
Falta de apoio
De acordo com os dados da Companhia dos Estágios, oito a cada dez estudantes que enfrentaram questões mentais não puderam contar com o apoio da empresa. É o caso de Carlos Rodrigues*, de 20 anos, estagiário há 11 meses.
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Apesar de sentir que já se desenvolveu profissionalmente com as funções proporcionadas pelo estágio, ele relata que o trabalho causa um desgaste que é “tanto mental quanto físico”.
— A gente leva muita coisa para casa. Já são seis horas por dia, o que já é uma carga horária meio extensa para um estagiário, aí tu leva a coisa para fazer em casa, às vezes de madrugada, às vezes de manhã, às vezes no ‘busão’ — explica.
Segundo ele, a empresa não tem supervisão do RH com relação à saúde mental dos estagiários, o que, na opinião de Brenda, é importante que tenha.
— Normalmente, o setor de RH é o responsável por criar programas de escuta, de acolhimento e de treinamento para oferecer habilidades e estratégias para que esses profissionais se sintam melhor dentro do trabalho — afirma.
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Para Brenda, a sensibilização das lideranças é um diferencial importante para as empresas.
— É fundamental capacitar as lideranças sobre comunicação, condução de conversas difíceis, sobre feedbacks. Isso vai refletir tanto nos estagiários, que são pessoas que estão em um processo de adaptação de vida, quanto para todos os outros colaboradores — explica a especialista.
Na opinião de Carlos*, o tratamento do empregador com os estagiários piora quando não tem alguém monitorando o programa de estágio.
— O abuso passa demais dos limites. Eu nunca recebi nenhum tipo de assistência, e eu acho que conversa entre o empregador e o estagiário deveria ser um negócio mais transparente — afirma Carlos*.
Para a gerente de projetos da Companhia de Estágios, Jéssica Gondim, estes dados devem servir de alerta para as empresas.
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— É sobre a importância de uma maior conscientização e investimento em programas de apoio psicológico nos programas de estágio — afirma.
Como lidar com o desgaste mental
Para Brenda, os dias difíceis, as cobranças e a busca por resultados sempre vão existir, afinal as empresas existem para isso. O que deve mudar é a forma com que os profissionais aprendem a lidar com as próprias emoções.
— Não podemos romantizar nossa carreira achando que só vão existir momentos felizes, dias produtivos, dias incríveis, porque a vida real não é assim. Mas também não precisamos nos desgastar fisicamente ou emocionalmente por conta disso — destaca.
A especialista afirma ainda que pessoas que já percebem alterações no apetite, sono ou comportamento, devem procurar profissionais de saúde mental, para dar início à terapia.
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Uma das soluções que Brenda apresenta são as estratégias de coping, que são recomendadas às pessoas que precisam se adaptar a circunstâncias adversas ou estressantes no trabalho. Elas podem ser utilizadas para uma comunicação mais efetiva ou para lidar com pessoas de personalidades distintas no ambiente profissional. De acordo com Brenda, as estratégias podem ser desenvolvidas através de leitura, rodas de conversa e treinamentos oferecidos pela empresa.
Apesar de apresentar soluções, Brenda recomenda que pessoas que estão percebendo que o ambiente de trabalho está gerando muito desgaste físico e emocional não tenham medo de mudar.
— Mesmo saindo, é fundamental que a pessoa perceba o que está no seu controle para aprender com isso e para evitar que o cenário e situações se repitam — conclui.
*Os nomes de todos os estagiários nesta reportagem foram alterados a fim de não prejudicar suas atividades profissionais
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*Sob supervisão de Andréa da Luz
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