Quando criança, Betina Anton passava as férias com os avós em Santa Catarina. Vinda de São Paulo, a família tinha como destino as cidades de Lontras, terra da mãe, e Rio do Sul, onde nasceu o pai. Após dias memoráveis no Vale do Itajaí, os Anton seguiam para o litoral, mais precisamente em Balneário Camboriú, onde ainda mantêm um apartamento. Era lá também que ela lembra do pai, agora falecido, lendo o jornal Diário Catarinense.

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Nas memórias também há um desses períodos letivos que antecediam a viagem para reencontrar os omas – apelido para avós em alemão – em que aconteceu algo que marcaria a vida dela, o inesperado sumiço da professora. Mais tarde, Betina saberia que a senhora Tante Liselotte fora afastada da escola por acobertar o médico nazista Josef Mengele e ter enterrado o corpo dele com nome falso no cemitério do Embu, em São Paulo.

Para a atual editora de Internacional na TV Globo, essa história precisava ser aprofundada:

– Fui atrás de mais informações, pesquisei e considerei que uma personagem essencial seria Liselotte, minha antiga professora, a qual consegui localizar com a ajuda do então diretor da escola germânica onde estudei. Só não esperava que ela fosse tentar me assustar, dizendo que era um assunto perigoso – conta Betina, durante a entrevista.

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Eram os primeiros passos de uma pesquisa que duraria seis anos e resultaria no livro “Baviera Tropical”, já traduzido para o inglês e prestes a ser lançado em oito países. Betina explica que a ideia partiu da conversa com um colega de trabalho. O papo era sobre um filme baseado na obra de um jornalista sobre um nazista. Pensando que também tinha uma história para contar, Betina mergulhou num fato que surpreendeu a todos: Como pode o nazista mais caçado no mundo ter vivido 18 anos no Brasil sem ser identificado?

– Eu acredito que Mengele foi muito precavido: não dava o nome verdadeiro para ninguém (só depois de um tempo de convivência num círculo de confiança), mudava de países sempre que desconfiava que a situação estava tensa para ele, conseguia tirar cidadania (como no Paraguai) e até uma torre de vigia construiu numa das casas, no interior do São Paulo, para observar quem se aproximasse. Ele estava sempre um passo à frente de quem tentava pegá-lo. Eu tive acesso às cartas dele na Polícia Federal, onde deixa transparecer que tinha medo de mudanças bruscas porque poderia levantar suspeitas. Mengele foi extremamente cuidadoso – conta.

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Para escrever o livro, Betina analisou documentos e entrevistou pessoas no Brasil, nos Estados Unidos, na Alemanha, em Israel e na Argentina. Apesar do tema bastante pesado, ao longo do livro o leitor vai se deparando com expressões do dia a dia, como “bafafá”, “comercial de margarina”, “sombra e água fresca”.

– Eu trabalho há mais de 20 anos na televisão. Em TV, a intenção do texto é sempre parecer que não está sendo lido, mas onde o apresentador conversa com o telespectador. Eu tentei fazer frases curtas, deixar as ideias claras e utilizei metáforas. Quis responder às dúvidas que eu sempre tive acerca do nazismo. Pensei: “Se estiver bem explicado para mim, estará bem explicado para as outras pessoas”.
Para algumas passagens, ela conta que precisou da ajuda de especialistas em diferentes áreas, como de um professor que explicasse o motivo de o mar de Bertioga, onde Mengele morreu afogado em decorrência de um AVC, ser escuro.

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– Eu escrevi que a praia de Enseada, onde foi o afogamento, não era exatamente a Côte d’Azur, pois essa é a imagem que o mundo tem das praias brasileiras, como se fossem todas transparentes, tal qual em Maceió ou em Florianópolis.

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Conforme Betina, o professor do Instituto de Oceanografia da USP ajudou a esclarecer que a cor escura está relacionada ao fato da existência da Mata Atlântica e material em decomposição que os rios levam para o mar.

Crueldade com as crianças

O livro é mais um que torna o sadismo de Mengele evidente. Os estudos que fazia com gêmeos, por exemplo, eram dosados de crueldade: ele injetava uma doença propositalmente num para ver como essa doença se desenvolvia. Quando um gêmeo morria, ele mandava matar o segundo e dissecava os dois corpos. A ideia era comparar o que aconteceu com os ambos, algo que não seria possível em qualquer outro contexto.

Mengele usava crianças sem qualquer piedade. No laboratório dele em Auschwitz, na Polônia, havia uma parede cheia de olhos humanos. Mengele participava de um estudo sobre a heterocromia, condição em que cada olho é de uma cor diferente. Pelos relatos dos sobreviventes, fica claro que ele mandava matar as pessoas para arrancar seus olhos. As pesquisas realizadas em Auschwitz eram completamente sádicas.
Para Betina, uma dessas vítimas sempre mexe com seu emocional:

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– A história que mais me pega é a da tcheca Ruth Elias, vítima de Mengele em Auschwitz, e que teve amarrada uma bandagem em volta dos seios para impedir que sua bebê mamasse. O médico queria ver quanto tempo a recém-nascida iria sobreviver sem mamar. Para mim, isso é um absurdo por vários motivos: não havia interesse científico dele (Mengele) além do sadismo, pois qualquer pessoa sabe que se um bebê não for alimentado irá morrer, além de uma crueldade fazer com que a mãe veja seu filho definhando sem nada poder fazer.

Betina conta que, mesmo já conhecendo a história de Ruth Elias, tendo visto uma matéria no Jornal Nacional e a tendo escrito, voltou a chorar enquanto fazia a revisão do livro.

Desde que lançou o livro, Betina conta ter recebido muitos relatos acerca da presença de nazistas no Brasil. Uma dessas lendas dá conta da vinda de Hitler. A pesquisadora faz um alerta sobre mitos e lendas que povoam a imaginação:

– A gente tem que tomar muito cuidado, pois a própria caçada a Mengele foi prejudicada porque todo mundo que via um velho alemão, em qualquer lugar e especialmente se fosse médico, achava tê-lo encontrado. A gente precisa se guiar pela documentação, pelo relato das testemunhas e no que mostra o exame de DNA, como foi o caso do Mengele. Até mesmo os restos mortais de Hitler, que morreu num abrigo subterrâneo, em Berlim, após o fim da Segunda Guerra Mundial, foram examinados.

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Apesar de passado tanto tempo e com muitas informações sobre os efeitos nefastos da ideologia nazista, ainda hoje se encontram células pelo país. Para Betina, a questão passa por informação:

– Eu acho que isso ocorre por falta de conhecimento sobre o que é o nazismo, uma ideologia de extrema-direita e muito perigosa, e suas implicações.

Veja imagens de Betina e do livro

Mengele gostava de ver os negros apanhar em “Escrava Isaura”

O nazismo é racista contra todos que não fizerem parte da raça ariana, o que também é uma invenção. Em uma das entrevistas feitas por Betina, o lado racista de Mengele se mostra num hábito que desenvolveu em terras brasileiras: o gosto por novelas. O mesmo Mengele que escrevera numa carta “Gosto mais das produções do Velho Oeste, porque nesses filmes se podem ver cavalos tão bonitos e cavaleiros brilhantes e, no final do dia, o herói escapa sempre ileso, apesar de lhe serem disparadas muitas munições”, sentava-se no sofá da sala para, com algum empregado do sítio, apreciar Escrava Isaura (1976-1977). Certas cenas caiam no gosto do fugitivo: ele gostava de ver os negros escravizados apanhar.

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Para Betina, ainda há falta de conhecimento sobre o que houve nos campos de concentração onde inocentes, ciganos, pessoas com deficiência, gêmeos foram mortos por experimentos, assim como mulheres assassinadas e vitimadas por experiências sem o mínimo critério científico e ético.

– Como pode isso ter vindo de um homem que tinha dois doutorados (Medicina e Antropologia)? – questiona.

Para a jornalista, o médico nazista estava inserido numa ideologia que permitia que ele cometesse essas barbaridades. Então, diz, é preciso tomar cuidado. O livro “Baviera Tropical” está sendo lançado no exterior. Em 2024, oito países (Estados Unidos, Polônia, Holanda, Hungria, Finlândia, Sérvia, Eslováquia e Portugal) terão edições traduzidas.

– Fico contente em saber que essa história vai chegar em lugares como a Polônia, onde teve o complexo dos campos de concentração de Auschwitz, e de outros lugares de onde chegaram tantas vítimas de Mengele.

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