Diz a lenda que em meados dos anos 60, quando a cor começou a chegar aos jornais, O Globo fez um projeto modernérrimo para lançar uma edição totalmente a cores, no domingo. O nome do jornal/revista: O Sol.
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Projeto pronto chamaram um jovem baiano recentemente despencado de Salvador. O nome dele era Caetano Veloso e tinha 23 anos. E já era Caetano Veloso para quem entendia das coisas. Chamaram e pediram um jingle, uma musiquinha pra tocar nas rádios anunciando a novidade. E o garoto fez o que se segue:
Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
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No Sol de quase dezembro
Eu vou…
O Sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou…
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot…
O Sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou…
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou
Por que não, por que não…
Veja você que o jingle era bem um retrato do Brasil e do mundo do final dos sessenta: espaçonaves (o homem desceria na lua em 69), guerrilhas (do Araguaia, por exemplo), Claudia Cardinale e Brigite Bardot, nossos mitos no cinema, presidentes, crimes. Mas quem lê tanta notícia assim?
Não sei até hoje por que o jornal do Roberto Marinho não saiu. Mas veio o Festival da Record de 1967 o Caetano pegou o jingle e colocou uma segunda parte bem romântica (que, aliás, não tem nada a ver com a primeira). Assim:
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço e sem documento,
Eu vou…
Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou…
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil…
Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou…
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou…
Por que não, por que não…
Por que não, por que não…
Por que não, por que não…
Por que não, por que não…
A música ficou em quarto lugar no festival. O que eu achei uma injustiça. Era muito, muito melhor do que Ponteio, do Edu Lobo, que ganhou e você nunca deve ter ouvido falar, apesar de ter suas qualidades. Era pau a pau com a segunda classificada, a já hoje clássica Domingo no Parque, do Gilberto Gil. Em terceiro, Roda Viva, do Chico.
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Um parênteses: estou falando de 1967, há 46 anos. Como diria o Belchior, “ainda somos os mesmos, como nossos pais”. Fecha parênteses.
Continuando.
Em 78, escrevi uma novela para a Globo e o Boni (então diretor de programação da emissora) escolheu o nome de Sem Lenço, Sem Documento. Tive um encontro com o Caetano e perguntei se era verdade a história do jornal O Sol (não esse, aquele). Ele me enrolou e não disse nem sim, nem não. Na época pegava mal fazer arte por encomenda. Principalmente para um jornal descaradamente a favor do regime militar.
Acho que cheguei até a acreditar que era tudo invenção. Na hora de ir embora, eu já na porta do elevador lá no Leblon, dando um tchau e ele cantarolou:
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– Por que não? Por que não?
* Escritor e jornalista elaborou texto inédito para O Sol Diário.