Carlos Henrique Schroeder descreve-se como um sujeito perturbado que escreve sobre personagens perturbados, de maneira perturbada. Sem medo de arriscar e com gosto pelo desafio, diz sempre preferir o caminho mais tortuoso. Dificultando o próprio afazer, porém, acredita que acaba por simplificar o trabalho da crítica, já que é “muito mais fácil bater num livro cheio de riscos e janelas e com diálogo com outras linguagens”. Nesta entrevista, o escritor catarinense reflete sobre o seu processo criativo com foco em As Fantasias Eletivas, livro recentemente publicado pela editora Record.
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Desde que você estreou na ficção, em 1998, tem apresentado personagens complexos e angustiados. Renê, protagonista de As Fantasias Eletivas, é um tipo ao mesmo tempo sombrio e corriqueiro. Um funcionário de hotel que passa as noites a limpar com álcool o balcão, mas que no fundo guarda um passado secreto e um emaranhado de angústias. Onde você encontra os personagens de suas histórias? Como nasceu Renê?
Um romance, um conto ou um poema podem surgir de uma imagem, de uma música, de uma história ouvida, de uma memória verdadeira ou falsa. Tudo pode ser material para a ficção. No caso de As Fantasias Eletivas, parti de um ponto muito pessoal: eu já fui recepcionista de hotel, trabalhei em quatro ou cinco hotéis em Balneário Camboriú e em turnos diferentes. Tinha 20 e poucos anos, pouco dinheiro e um senso de observação bem aguçado. Escrevia muitos contos sobre hóspedes, mas sempre acabava jogando fora, pois me sentia como um vampiro que sugava a essência das pessoas. Foi uma época divertida, sobrava tempo para ler e escrever e muitos hóspedes sul-americanos esqueciam livros, muita porcaria, mas também coisas que foram importantes para minha formação, como Augusto Monterroso, Mario Levrero, Pablo Palacio, Onetti e Borges. Então escrevi um conto chamado Os Recepcionistas, que está no livro As Certezas e as Palavras e trata da vida frenética de um recepcionista de hotel. Mas sempre fiquei com a sensação de que não havia exorcizado de vez esse tema, de que não havia ainda acertado minhas contas. Então ao redor desse conto surgiram algumas obsessões. Eu queria escrever um romance sobre essa época, mas saiu outro absolutamente diferente, mais focado na solidão, na escrita, com um personagem forte como Copi surgindo e tomando conta do livro, deixando de lado Renê, que deveria ser o grande anti-herói.
As Fantasias Eletivas é um romance fragmentado e não-linear, que lança mão de inúmeros recursos narrativos. Em determinado ponto, abre-se um outro livro dentro do livro. Fotografias surgem como elementos narrativos de grande força. Narrar, hoje, significa também percorrer trânsitos nem sempre óbvios?
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Para mim, literatura é sobretudo risco, você corre riscos a todo instante, na escolha dos personagens, da abordagem. Eu nunca escolho o caminho mais fácil, sempre gosto de me desafiar. Sempre vejo meus livros como móbiles, algo mais orgânico, e não como algo plano. Então esse livro é, na verdade, muitos livros. Precisei de ajuda de outras linguagens para dar conta desse imaginário. Bom, assim eu facilito o trabalho da crítica também, é muito mais fácil bater num livro cheio de riscos e janelas e com diálogo com outras linguagens. (risos)
Impossível não associar o uso de imagens no livro àquele feito por W.G.Sebald. Há de fato alguma inspiração neste autor alemão?
Eu gosto muito de Sebald, mas Cortázar e Breton também utilizaram a fotografia muito antes. Sterne, lá pelo meio de 1700, já usava o branco como elemento visual na página. Mas Sebald é realmente especial, a fotografia em seus livros não é uma ilustração ou uma alegoria, é personagem. Em As Fantasias Eletivas ela é personagem também, como pura representação da solidão. Num mundo saturado de informação como o nosso, as fotografias são uma espécie de segunda memória, é para lá que você corre quando quer lembrar os melhores momentos de uma viagem, de seu casamento, de sua família, do final de semana. É nossa memória externa, ou melhor, interna, como em Sebald.
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E como foi a produção dessas fotos? São de sua autoria?
Sim, todas as fotos do livro são minhas e embora simulem instantes de Polaroid, fiz com meu surrado Iphone 4 em 2012. Eu não sou fotógrafo profissional, não domino e nem estudei as técnicas de fotografia, tampouco tenho bons equipamentos, mas o que me move é a distância entre o fotógrafo e a fotografia e suas similaridades com a literatura. Algo que o ensaísta inglês Geoff Dyer levanta muito bem num trecho de seu ensaio Sonhos Antigos, Sonhos Novos: “Às vezes, creio que o elemento definidor de minha interpretação pessoal de fotografias deriva do fato de que, durante anos, nunca pensei em quem as havia tirado”. Aí entra Copi, nossa personagem, alguém que busca algo além da própria imagem, alguém que busca nas fotografias as ficções que gostaria de criar para aplacar sua solidão.
“Escrever é sempre uma esquizofrenia domesticada. Se algumas vezes é divertido, na maioria das vezes é doloroso, muito doloroso.” (Schroeder, Carlos Henrique)