Afalta de combustível provocou a queda do avião da companha aérea boliviana LaMia em 29 de novembro do ano passado. É o que constatou a apuração do Grupo de Investigação de Acidentes e Incidentes de Aviação (Griaa), uma unidade especial da Aeronáutica Civil da Colômbia, em relatório preliminar divulgado menos de um mês após a tragédia – o mesmo órgão informou à reportagem que o relatório final será divulgado na primeira semana de dezembro.

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As investigações em andamento apontam que, além da imprudência responsável pela inoperância dos motores, uma sequência de falhas nos procedimentos anteriores ao voo contribuiu para evitar a queda e as mortes.

Documentos oficiais verificados pela reportagem indicam erros na permissão do voo por parte das agências bolivianas, que poderiam ter impedido a decolagem da aeronave diante da flagrante insuficiência de combustível. Isso porque, antes mesmo de o avião deixar a pista em Santa Cruz de La Sierra, já se sabia que a autonomia de voo declarada era exatamente igual ao tempo planejado em rota e sequer existia um aeroporto alternativo mapeado em caso de emergência.

Mas às vésperas de se completar um ano do acidente, as investigações ainda não resultaram em acusações processuais contra brasileiros, bolivianos ou colombianos. Prisões pontuais ocorreram na Bolívia dias após o fato, e a licença da LaMia foi cassada, mas não há notícia de condenações.

Quem comanda a principal apuração em relação às causas do evento é a unidade ligada à Aeronáutica Civil da Colômbia, país onde foi registrada a tragédia há um ano. Na Bolívia, a Direção Geral da Aeronáutica Civil (DGAC) aponta que o relatório final da investigação está a cargo da Colômbia.

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Já o Brasil tem frentes distintas de investigação. O Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) foi mobilizado para cooperar com as autoridades colombianas, mas faz apurações com a finalidade de prevenir futuros acidentes, sem o propósito de determinar culpa ou responsabilidades neste caso.

O Ministério Público Federal em Chapecó também realizou dois procedimentos: um Inquérito Civil para levantar as causas do acidente e um Procedimento Investigatório Criminal para certificar a eventual responsabilidade de brasileiros nos fatos, considerando especulações de que existiam vantagens indevidas para quem contratasse a LaMia.

As duas peças investigatórias no Oeste do Estado já estão praticamente concluídas. Em relação à falta de combustível, o MPF corrobora a investigação colombiana – além do relatório preliminar de dezembro, a Procuradoria em Chapecó recebeu no último mês de outubro quase 3 mil páginas de documentos elaborados pelas autoridades daquele país.

“A conclusão é – em que pese inaceitável – bastante simples e, de certa forma, já esperada: todos os elementos apontam para a falta de combustível, como a provável causa principal desse trágico acidente”, anotou em despacho o procurador Carlos Humberto Prola Júnior.

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Os trabalhos em Chapecó tiveram o auxílio do major-aviador Marlon da Fonseca Sampaio, investigador de acidentes aeronáuticos designado pelo Cenipa para prestar apoio. As autoridades bolivianas, por outro lado, em nada colaboraram com o Ministério Público Federal em Chapecó. Tudo o que o governo da Bolívia repassou foi um e-mail com o registro da tramitação e dos questionamentos sobre o plano de voo da LaMia.

Por iniciativa própria, a deputada boliviana Erika Negrete esteve em Chapecó no mês de junho e entregou ao Ministério Público Federal cópias de requerimentos em que cobrava respostas das autoridades daquele país.

Ouvido pelo DC, o procurador Carlos Prola preferiu não gravar entrevista, mas observou que é possível não haver desfecho incriminatório nas investigações da Colômbia porque os principais envolvidos com a companhia aérea, como o piloto e sócio da LaMia, Miguel Quiroga, também morreram na queda. No entanto, o próprio MPF levantou suspeitas de que a empresa pode não pertencer aos donos que constam no papel. Os procuradores encontraram documentos que apontam que a venezuelana Loredana Albacete negociou, em nome da LaMia, o fretamento da aeronave com o clube.

MPF isenta Chapecoense

A investigação do Ministério Público Federal em Chapecó também acenou que não houve negligência ou imprudência por parte dos dirigentes da Chapecoense na contratação da LaMia. Não foi identificado qualquer indício de que tenha havido pagamento de valor indevido ou outro interesse escuso na contratação. A apuração também apontou não haver evidências de que algum brasileiro possa ter contribuído para o acidente. Segundo a apuração, o clube buscou orçamentos com outras companhias e os valores oferecidos pela LaMia eram menores.

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Outras empresas consultadas também não poderiam realizar voos fretados para a Colômbia. A investigação também considera que as tratativas foram feitas por dirigentes da Chape – vitimados no acidente –, sem intermediários e que a seleção da Argentina, prestigiada internacionalmente, tinha voado recentemente no mesmo avião. “Não se identificou qualquer evidência de que algum brasileiro possa ter dado causa ou tenha contribuído para o trágico acidente”, concluiu o MPF.

Assessor jurídico da Chapecoense, o advogado Marcelo Zolet lembra que a compra das passagens para viagens em jogos da Sul-Americana ocorria às pressas pois era realizada na medida em que o clube avançava no torneio. Ele conta que antes da compra foi preciso aguardar outro jogo da semifinal para haver certeza sobre o local da final.

– A gente soube que seria na Colômbia na sexta-feira de manhã, quando a equipe já viajaria a São Paulo para jogar contra o Palmeiras no Brasileirão. Cotamos voos comerciais para mais de 40 lugares, o que é difícil. Então, começamos a fretar, queríamos todos juntos, o que é costume dos clubes de futebol. O MPF concluiu que não houve ato ilícito, significa que houve boa fé dos dirigentes – reforça o advogado.

Peça-chave na apuração

Apontada como responsável por autorizar o plano de voo da LaMia, Celia Castedo, ex-funcionária da Administração de Aeroportos e Serviços Auxiliares de Navegação Aérea da Bolívia (Aasana), foi ouvida pelo MPF, que concluiu que ela foi omissa, mas que os erros também são consequências da fragilidade dos controles realizados pelas agências bolivianas. Confira trechos do depoimento:

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Celia afirmou que sua função era informar o despachante em caso de observar situações erradas ou estranhas. Disse que a responsabilidade de verificar se o plano de voo está adequado com as normas é exclusivamente do despachante da linha aérea ou do piloto do avião. Disse ter feito cinco observações no plano de voo: alertou sobre a autonomia de combustível; verificou que o despachante não tinha preenchido o nome, somente o número; e disse ter feito outras três observações de menor importância.

Afirmou que pediu três vezes para fazer a revisão e verificação sobre o aeroporto alternativo e a autonomia de voo, mas alegou que o despachante da LaMia disse que toda a informação contida já estava autorizada.

Relatou que os comandantes e despachantes sempre aceitavam as mudanças, mas que naquela oportunidade as anotações não foram aceitas e por três vezes o despachante retornou dizendo que iriam viajar daquele jeito. Disse ainda que é responsabilidade dos inspetores irem até o avião para verificar as informações e não permitir a saída do voo nessas condições.

O QUE DIZ A INVESTIGAÇÃO DO ACIDENTE

Conforme documentos do Ministério Público Federal em Chapecó e relatório preliminar do Grupo de Investigação de Acidentes e Incidentes da Aeronáutica Civil da Colômbia.

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HISTÓRICO DO VOO

A aeronave decolou de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, às 22h18min. Dados do avião indicam que às 2h55min41s todos os motores se apagaram. A aeronave, então, teria planado por mais de três minutos até o impacto no solo, já em território colombiano.

MOTORES E COMBUSTÍVEL

Na inspeção do local do acidente, não houve constatação de evidência de incêndio nem falha nos motores 1, 2 e 4. Não foi possível fazer exame detalhado no motor de número 3 porque estava suspenso por uma árvore, em posição instável. Com exceção de um leve cheiro de combustível nos tanques, não houve evidência aparente de combustível em toda a zona do local do acidente. Também não houve evidência de fogo. O tempo total de voo e a autonomia de combustível foram registrados no plano de voo como 4 horas e 22 minutos. Assim, a indicação da investigação é de que não havia qualquer folga de combustível.

INCONSISTÊNCIAS

O relatório preliminar da investigação na Colômbia aponta que o escritório do plano de voo solicitou que o roteiro apresentado pela LaMia fosse modificado e apresentado novamente por algumas inconsistências:

-A rota não incluía uma saída padrão por instrumentos (procedimento que fornece proteção específica contra obstáculos) desde Santa Cruz de La Sierra.

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-Não estava estava registrado no plano de voo um segundo aeroporto alternativo.

-O tempo de voo estimado na rota correspondia ao mesmo tempo de autonomia de combustível.

-O despachante só tinha assinado o plano de voo, mas não tinha registrado seu nome.

CONCLUSÃO

A investigação preliminar da Colômbia, corroborada pelo MPF em Chapecó, conclui que não houve falhas nos sistemas da aeronave que pudessem ter causado ou contribuído para o acidente. A evidência disponível, aponta o relatório colombiano, é consistente com a falta de combustível no avião.

DEPOIMENTO-CHAVE

Apontada como reponsável por autorizar o plano de voo do avião da Lamia, a ex-funcionária da Administração de Aeroportos e Serviços Auxiliares de Navegação Aérea da Bolívia (Aasana) Celia Castedo Monasterio foi ouvida em videoconferência pelo Ministério Público Federal em Corumbá (MS). Com medo de ser responsabilizada caso permaneça na Bolívia, ela buscou refúgio no Brasil desde dezembro do ano passado. Celia tem alegado que, apesar de observar irregularidades, não teria autoridade para impedir a realização do voo.

O que disse a funcionária boliviana ao MPF:

-Respondeu que sua função era informar o despachador em caso de observar alguma situação errada ou estranha no plano de voo. Disse que a responsabilidade de verificar se o plano de voo está adequado com as normas é única e exclusivamente do despachador da linha aérea ou do piloto ou comandante do avião.

-Disse ter feito cinco observações no plano de voo porque ficou preocupada. A autonomia de combustível era a mesma que o tempo de voo. Também verificou que o despachador não tinha preenchido o nome, somente o número. Disse ter feito outras três observações de menor importância.

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-Afirmou que pediu três vezes para fazer a revisão e verificação sobre o aeroporto alternativo e a autonomia de voo e que pediu ao despachador para falar com o piloto e o comandante para mudar a informação.

-Alegou que o despachador da LaMia disse que toda a informação contida já estava autorizada para arealização do voo.

-Relatou que as observações são feitas somente quando a informação apresentada não é coerente e que os comandantes e despachadores sempre aceitavam as mudanças, mas que naquela oportunidade as anotações não não foram aceitas e por três vezes o despachador retornou dizendo que iriam viajar daquele jeito.

-Sobre a quantidade de combustível e autonomiado voo, afirmou que é responsabilidade dos inspetores irem até o avião para fazer a verificação da informação e não permitir a saída do voo nessas condições.

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O MPF em Chapecó conclui que Celia foi omissa, mas não errou sozinha:

“Resta evidente a omissão da Sra. Celia, agente público que tomou conhecimento de flagrante irregularidade, que colocava em risco a segurança do voo e a vida dos passageiros, e não tomou nenhuma atitude efetiva

diante da resistência da empresa LAMIA em realizar as alterações necessárias. Por outro lado, o quadro traçado pela Sra. Celia mostra não apenas a sua falha individual, mas também uma grande fragilidade dos controles realizados pelas agências bolivianas de aviação civil em relação aos voos fretados autorizados naquele país, que, segundo denota claramente o voo para o transporte da equipe da Chapecoense, estavam sendo autorizados em contrariedade com as exigências da legislação”.