Patti Smith certamente enfrentou muita coisa ao longo dos anos. Na vida pública, em plena década do movimento punk, nos anos 1970, ela ousou empunhar uma guitarra e liderar uma banda de rock quando mulheres simplesmente não faziam isso. Abriu frentes em outras áreas artísticas, tornando-se conhecida também como poetisa, escritora e fotógrafa. Na vida pessoal, passou por altos e baixos na vida familiar e amorosa; perdeu para a AIDS o melhor amigo, o icônico fotógrafo Robert Mapplethorpe; e viu o marido e o irmão morrerem no mesmo ano, em meados dos anos 1990. Fez trabalhos e turnês ao lado de nomes lendários como Bob Dylan e Bruce Springsteen; e se envolve desde sempre em causas políticas e ambientais.
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Talvez por tudo isso eu tenha me surpreendido quando ela atendeu o telefone, direto de sua casa em Nova York: “Oi, aqui é a Patti. Muito prazer em conhecer”, disse, em uma vez calma e meiga – diferente da imagem “durona” que eu sempre tive dela. Contei a ela que 13 de julho é considerado, no Brasil, o Dia do Rock; e ela parece ter adorado a ideia. Embora o tom simpático e tranquilo não tenha mudado ao longo da conversa, Patti Smith demonstra por meio das palavras que é durona, sim: certa do que quer, e sem medo de falar o que pensa. O que não quer dizer que o seu modo de expressar essas opiniões não possa ter um certo lirismo: ela é uma poetisa, afinal de contas.
Você esteve no Brasil no final de 2019 para fazer shows e divulgar dois livros que haviam acabado de ser publicados aqui, Devoção e O Ano do Macaco. Como é se apresentar no Brasil, e como você vê o público e seus fãs daqui?
Eu sempre amei o Brasil, porque cada cidade é tão única! Mas uma coisa que é consistente, que todos os brasileiros parecem ter em comum, é a paixão: o povo brasileiro é muito passional, muito entusiasmado, muito enfático em apoiar as coisas de que gosta ou aprova. Os brasileiros sempre apoiaram muito não só minhas músicas, mas meus livros, minha poesia. Eu acho que a cultura brasileira é fantástica. Há tantos museus lindos, tantos artistas incríveis. Eu me sinto sempre muito bem-vinda. E os shows são uma loucura! [risos] A energia das pessoas é fantástica. E isso apesar de tudo o que vocês estão enfrentando no Brasil nos últimos anos. Eu acho que os brasileiros tem enfrentado dificuldades muito parecidas com as do povo norte-americano.
De fato, é possível traçar muitos paralelos entre a situação política dos Estados Unidos e do Brasil atualmente. A polarização exagerada, a falta de diálogo, as decisões baseadas mais em ideologias do que em fatos…
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Ambos os países têm governantes fracos. Estamos pagando por termos, nós mesmos, colocado homens fracos em posições de poder. Também enfrentamos muitos problemas ambientais, por incompetência de quem está na administração. Eles não acreditam ou não se importam com as mudanças climáticas. Nossos líderes também estão se mostrando inúteis durante essa pandemia… Resumindo, ambos os países precisam de líderes melhores. Uma das coisas terríveis de ter Donald Trump na presidência é que ele “inspira” outros governantes a ser como ele. Ele prejudica não só o nosso próprio país, mas outros, no mundo todo. E, entre as pessoas comuns, a polarização política cria uma falta de empatia extrema – falta de empatia pelo outro, pela mãe natureza, pelos povos indígenas, pelos estrangeiros. Espero que, nas próximas eleições, nós consigamos mudar alguma coisa. Eu diria que as próximas serão as eleições mais importantes da história dos Estados Unidos.
Você acha que Donald Trump vai ser reeleito?
Se ele for reeleito, eu vou passar a acreditar que toda a fibra moral do nosso país se desintegrou. Eu não consigo imaginar esse homem na presidência por mais quatro anos. Eu não vou nem dizer que eu “espero que” ele não seja reeleito; eu vou dizer que eu vou trabalhar o mais duro que eu puder e tentar convencer todo mundo a não votar nele.
O que a inspira a escrever livros? É uma inspiração diferente da que a leva a escrever músicas, por exemplo?
Escrever uma canção é completamente diferente de escrever um livro. Acho que escrever uma canção traz um tipo diferente de responsabilidade, porque geralmente você está trabalhando com um músico que vai compor uma melodia para aquela letra, e as duas coisas têm que andar em conjunto. E uma música tem quase o dever de se conectar com quem vai ouví-la. Eu diria que é uma atividade um pouco mais extrovertida. Para mim, escrever músicas é muito mais difícil; porque eu não me considero musicista – eu tenho algumas melodias na cabeça, mas acho difícil compor. Eu me considero muito mais uma escritora. Eu não escrevo canções sempre; mas eu escrevo todos os dias: mesmo se não for algo que eu pretenda publicar, eu escrevo alguma coisa, um poema, um fragmento, um capítulo de alguma coisa, algumas poucas frases. Isso é parte do que eu sou.
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Claro que escrever livros traz outros tipos de responsabilidade: quando eu escrevo sobre alguém que conheço, ou que conheci, eu tenho uma responsabilidade com a verdade, com nosso relacionamento, com a cronologia de tudo o que aconteceu. Por isso eu gosto de alternar. Escrevo livros autobiográficos, mas também escrevo ficção, que me permite ser livre. Já outros livros, como O Ano do Macaco, não foram planejados: eles surgiram organicamente enquanto eu viajava, a partir de trechos dos meus diários, por exemplo. Mas também há bastante ficção dentro dele. É uma “ficção autobiográfica.”
Eu imagino que você também seja uma leitora voraz. O que você tem lido ultimamente?
Sim, eu estou sempre lendo. Hoje eu estava lendo um livro chamado Love and Garbage, que é lindamente escrito, de um autor tcheco chamado Ivan Klíma. Esse livro foi banido por um bom tempo [quando a República Checa estava sob influência da União Soviética]. E eu estou sempre relendo livros que amo; às vezes por prazer, às vezes como uma forma de estudo para os meus próprios livros. Gosto de aprender com o estilo dos autores que admiro. E eu tenho uma tendência a ler mais de um livro por vez… Na verdade, eu também escrevo mais de um livro por vez. [risos] No momento eu estou escrevendo dois livros ao mesmo tempo, um bem diferente do outro. Um deles é bastante autobiográfico, sobre minha infância e sobre como nós evoluímos ao longo da vida, como seres humanos. E o outro livro é ficcional, mas a trama gira em torno das mudanças climáticas.
Eu ia perguntar o que você está fazendo durante a quarentena… Essa é a resposta, então? Você está escrevendo dois livros ao mesmo tempo?
No começo, a quarentena foi muito difícil para mim. Sabe, logo depois de fazer os shows no Brasil, eu me apresentei no Chile, na Argentina, aí voltei para os Estados Unidos, fiz um show em San Francisco… E de repente tudo o que estava planejado para o próximo ano foi cancelado. Agora mesmo, eu deveria estar em turnê na Espanha. Eu não esperava ficar trancada na minha casa em Nova York, sem ir a lugar nenhum. Eu não gosto disso. Eu amo viajar. Pelo primeiro mês e meio, eu achei muito difícil conseguir fazer qualquer coisa, inclusive escrever. Mas então eu tive que ter uma conversa de gente grande comigo mesma. [risos] Eu pensei “você não pode ficar improdutiva desse jeito.” Então eu voltei a escrever todo dia.
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Eu entendo que é difícil nesse momento, mas acho que precisamos ser disciplinados. Eu acordo, faço exercícios – que eu nem gosto muito de fazer -, cuido dos meus gatos, tomo café, sento e escrevo por pelo menos duas horas. Depois eu dou uma caminhada, cuido da casa, lavo a minha roupa… Eu aprendi que, em vez de ficar me cobrando e pensando que não estou fazendo o suficiente, eu tenho que pensar em tudo o que faço como uma conquista. “Eu passei pano no chão da casa, está tudo limpinho.” Isso é uma conquista. “Eu conversei com meus filhos, que estavam precisando de conselhos.” Isso é uma conquista. Eu sei que parece bobo, mas é uma maneira de perceber que não estamos improdutivos, não estamos “sem fazer nada.”
Eu não gosto de ficar em casa, sem contato social, mas eu quero viver uma vida longa e produtiva; então nesse momento eu estou sendo prudente e fazendo o que preciso fazer para sobreviver. Ao longo da história, pessoas precisaram fazer coisas muito mais difíceis que isso para sobreviver. Hoje mesmo, em diversos lugares do mundo, pessoas precisam fazer coisas muito mais difíceis que isso para sobreviver.
O que você disse também tem muito a ver com manter-se mentalmente saudável durante esse período – e essa sempre foi uma bandeira sua, certo? A defesa da manutenção da saúde mental, da busca de tratamento psicológico e psiquiátrico. A pandemia e a quarentena têm afetado muito a saúde mental de todo mundo.
Com certeza! Eu tenho parentes, amigos, que normalmente são pessoas muito enérgicas, produtivas, sociáveis; e estão profundamente deprimidos agora. Muita gente está lidando com falta de dinheiro, também, especialmente no mundo artístico. Todos temos muito com o que nos preocupar. Eu me senti muito para baixo no início da quarentena; eu não estava sendo eu mesma. Por isso eu tive que traçar esse plano, por assim dizer; descobrir o que me faz sentir bem a respeito de mim mesma e colocar essa estratégia em prática. É quase como se precisássemos enganar a nós mesmos para manter a positividade. Mas ajuda. Humanos são fortes, são resilientes. Nós vamos conseguir atravessar isso.
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Você acha que alguns comportamentos, algumas mudanças que começaram por causa da pandemia vão se manter depois dela? Ou as coisas vão aos poucos “voltar ao normal”?
Eu não acho que as coisas vão voltar a ser como eram. Não vamos ter aquele “velho normal” de volta. E acho que isso vai ter aspectos positivos e negativos. Por exemplo, eu acho que as pessoas já estão percebendo que não precisam ter tanto: comprar tanto, gastar tanto. Acho que as pessoas estão descobrindo novas e criativas maneiras de desempenhar seus trabalhos. Mas também acho que as pessoas estão desenvolvendo comportamentos que vêm de uma energia frustrada que elas têm – essas pessoas que saem à noite, todas as noites, para beber, fazer festas, apesar da pandemia… Ninguém precisa fazer festa todas as noites! Você não fazia isso antes da pandemia, por que precisa fazer agora? Me parece um comportamento que vem da frustração, e que eu espero que seja passageiro.
Como você se sente sabendo que é uma das artistas mais influentes da história do rock? Você se vê dessa maneira?
Eu não sabia disso! [risos] Sabe, ouvir algo assim é maravilhoso. Eu e minha banda nunca fomos um enorme sucesso comercial, mas, pelo que as pessoas falam, eu sinto que conseguimos construir algo precioso. Se nosso trabalho influenciou positivamente as pessoas, jovens músicos, mulheres, isso me deixa muito orgulhosa e muito feliz. Mas eu definitivamente não me vejo dessa maneira. Eu sou uma escritora, uma mãe, e por acaso canto rock. Mas é apenas o meu trabalho.
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Como você a indústria musical e a cena musical, hoje em dia, especialmente para as artistas mulheres?
Comparada a como era quando eu era jovem, a situação é fantástica. Eu tenho certeza absoluta de que hoje há desafios totalmente diferentes dos que eu enfrentava quando jovem: a indústria musical basicamente desmoronou nos últimos anos, por exemplo, as gravadoras perderam o poder que tinham. Mas, quando eu comecei, eu não via outras garotas tocando guitarra. Eu não estou dizendo que sou especial nem nada disso, só estou dizendo que as garotas não tinham o espaço e as oportunidades que têm hoje. Agora você mulheres à frente de bandas de rock, vê mulheres que são guitarristas incríveis, vê cantoras pop poderosíssimas. Há muito mais diversidade.
E, para todos os músicos, mulheres ou homens, o processo é muito mais democrático. Nos anos 1970, sua única chance de ficar conhecido era se alguma gravadora decidisse assinar com você e alguma rádio resolvesse tocar suas músicas. E agora nós temos a Billie Eilish, que fez um álbum com o irmão dela no quarto de casa e ganhou um Grammy. Acho que há oportunidade para todos, mas você precisa saber exatamente o que quer fazer – e quais sacrifícios vai precisar fazer para isso. Eu me recusava a vestir o que queriam que eu vestisse, pentear meu cabelo do jeito que queriam que eu penteasse, fazer minhas músicas do jeito que queriam que eu fizesse. Sempre soube que queria fazer as coisas exatamente do meu jeito.