Nunca se viu conjunto de crimes tão graves

A avaliação é de Carlos Augusto Ayres Britto de Freitas, sobre o Mensalão. AO 70 anos, ele ainda está longe de se aposentar. Na primeira insinuação de que a vida estaria mais tranquila longe do Supremo Tribunal Federal (STF), responde com a voz serena, marcada pelo sotaque sergipano:

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– Continuo no batidão de sempre.

Uma semana depois de deixar a presidência da mais alta Corte do país, o magistrado atende a numerosos compromissos para conferências e homenagens. Nada, porém, denota estresse no tom cordial de Ayres. Parece à vontade depois de três meses de tensão à frente do rumoroso julgamento do mensalão. O local da entrevista foi uma escolha do ex-ministro, o Ernesto Cafés, ambiente aconchegante que ele costuma frequentar aos domingos.

– Boa tarde, Aninha. Tudo bem com você? Um café com leite – pede o ministro à garçonete, que vez por outra serve tapioca doce para o ilustre frequentador.

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Entre máquinas de torrefação e cafés, Ayres filosofa em meio à tarde nublada de quarta-feira em Brasília. Ao longo de quase duas horas de entrevista, cria neologismos como “insimilar”, cita gurus indianos como Jiddu Krishnamurti e Osho (Rajneesh), fala de pequenos prazeres como tocar violão e dos preparativos para o lançamento de seu sétimo livro de poesia, DNAlma, projeto que havia abandonado por não achar conveniente lançá-lo em meio ao julgamento do mensalão, por conta de liberdades que concede enquanto escreve.

– Escrevo como quem respira, e a publicação naquele momento me traria problemas – reconhece.

Afinal, o livro contém poemas curtos, tipo haicai, com pérolas como: “O que certos políticos sabem cerzir são as meias verdades”.

::: Ministro diz que sonhou em ser jogador de futebol

Confira a entrevista:

Diário Catarinense – O senhor comentou, durante o julgamento do mensalão, que condenar alguém deixa na boca um gosto de jiló. Esse gosto já passou?

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Ayres Britto – Sim. Um juiz criminal tem de julgar com o máximo de cuidado para não se sentir culpado ao culpar. No começo, ou até a metade do julgamento, o meu sono estava mais fatiado do que a metodologia usada por Joaquim Barbosa para o julgamento. E creio que isso acontecia com os demais ministros. Por isso falei sobre gosto de jiló, mandioca brava e berinjela crua. Você fica se questionando o tempo todo. Quando o caso é de condenação, tem de condenar. Você condena contristadoramente, amargamente, principalmente se a condenação for para aplicar a pena privativa de liberdade.

DC – Como o senhor vê os comentários de que há exagero nas penas do julgamento do mensalão?

Ayres – Primeiro, o Supremo fixou uma pena a partir do voto do relator (Joaquim Barbosa), que, na maioria das vezes, preponderou sobre o voto do revisor (Ricardo Lewandowski). Se convencionou para um segundo momento alguns ajustes, para que o princípio da proporcionalidade seja observado ao máximo. Alguns ajustes ainda virão, sobretudo por efeito da distinção entre crime continuado e concurso material de crimes. Isso tudo ficou ajustado, é possível, portanto, que mais adiante haja uma pequena redução nas penas.

DC – Como o senhor vê as manifestações de condenados com relação ao Supremo? É um amadurecimento da democracia ou uma afronta à Corte?

Ayres – Vejo a irresignação dos réus como uma reação natural de quem vê o processo pelo prisma do personalíssimo, que diz respeito aos interesses deles. Essa irresignação fica no princípio da liberdade de pensamento e expressão. Nada a censurar. Agora, a minha convicção é de que o Supremo foi serviente do direito positivo brasileiro ao emitir os dois juízos centrais: o primeiro de condenação e o segundo de apenação, fazendo com transparência, responsabilidade, cuidado técnico e isenção.

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DC – É difícil não ceder à pressão da opinião pública num julgamento como o do mensalão?

Ayres – Tenho para mim que o Supremo fez mais à opinião pública do que foi influenciado por ela. Não vamos inverter as coisas. À medida que o processo ia transcorrendo e os debates entre os ministros do Supremo se travando, a opinião pública foi se formando. Mas não é só: um ministro do Supremo é vacinado contra qualquer tipo de pressão.

DC – O julgamento surpreendeu em parte o cidadão, que não esperava ver grandes políticos condenados. Fica um novo padrão para nossa política?

Ayres – Sou de formação holista, tendo a ver as coisas por um prisma esférico. Quando você vê a realidade, inclusive jurídica, esfericamente, você a vê por todos os ângulos. O que tem sucedido no Supremo na última década? É só você pensar: combate ao nepotismo, células-troncos, Lei Maria da Penha, liberdade de imprensa, homoafetividade, Lei da Ficha Limpa, fidelidade partidária, Marcha da Maconha. O Supremo vem com histórico de decisões que influenciam o modo de agir e pensar dos brasileiros, está mudando a cultura brasileira para mais próxima da democracia, do não preconceito e do civismo.