Lia Vainer Schucman é Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), com estágio de Doutoramento no Centro de Novos Estudos Raciais pela Universidade da Califórnia. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Lia é ativista antirracista e pesquisadora de psicologia e relações étnico-raciais. Está prestes a relançar o livro Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo: Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo, originalmente publicado em 2014; e escreveu também Famílias Interraciais: tensões entre cor e amor.
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Branca, Lia crava: “O branco que deseja um país melhor precisa ser antirracista.” Conversamos com a professora e pesquisadora para entender sua área de estudos e qual é o papel do branco nesse contexto. Confira:
Quando e você começou a se interessar pelo tema do racismo e estudá-lo?
Eu comecei a me interessar por esse assunto antes mesmo de estudar psicologia; não sei bem precisar um ponto inicial. Várias coisas que aconteceram foram me fazendo mais sensível à causa. Um exemplo: quando tinha cerca de 16 anos, eu e um amigo estávamos saindo da Festa da Laranja, aqui em Florianópolis; indo a pé para casa, já que eu morava na Trindade. Esse meu amigo era um homem negro. No caminho, nós fomos assaltados por dois outros homens, brancos. Meu amigo era professor de capoeira, e tentou usar um golpe para pegar minha bolsa de volta. Eu não sei se já havia policiais ali por perto, ou se alguém chamou a polícia, mas os policiais nos levaram para a delegacia.
Eu lembro que, naquela noite, meu amigo ficou preso na delegacia, e eu fiquei do lado de fora e liguei para que a minha mãe fosse me buscar. Os policiais disseram que eu estava liberada, mas minha mãe não quis embora enquanto meu amigo também não saísse da delegacia. Isso ficou muito marcado na minha cabeça. Nós havíamos sido assaltados, e ele foi preso. Ficou muito claro para mim que, no Brasil, as pessoas criam o criminoso antes do crime. Eu sou de família judia, também, então a história de ser violentada e discriminada por causa da raça já era uma coisa que eu conhecia por meio de relatos da minha avó, por exemplo, que chegou a ficar em campo de concentração.
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Comecei a estudar formalmente raça, racismo e discriminação por meio de uma bolsa em 2002. Mas logo eu percebi que não tinha tanto interesse em estudar o discriminado; eu queria estudar quem discriminava. No doutorado, eu queria estudar quem comete o racismo, já que o racismo é uma relação. Foi quando eu entrei em contato pela primeira vez com essa área que se chama estudos críticos da branquitude; que é basicamente tentar entender quem é o branco e qual é a posição ativa dele na manutenção dos privilégios raciais em um país que tem estrtutura racista, como o Brasil.
É disso que seu livro Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo – Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo trata, então? Você pode falar um pouco mais sobre ele e sobre como foi escrevê-lo?
Esse livro é fruto da minha tese de doutorado. Ele foi lançado originalmente em 2014, mas vai ser relançado agora, em uma nova edição. Minha tese era exatamente isso: tentar entender como os sujeitos brancos mantém e legitimam o racismo na estrutura social; e entender como essa ideia de raça criada no século XIX – ou seja, a ideia de que há algo intrínseco aos sujeitos de acordo com sua raça – também constitui as pessoas brancas, já que a maioria dos estudos de psicologia é voltada para a maneira como essa ideia de raça acomete os negros, e não para a maneira como essa ideia dá privilégios aos brancos.
Minha pergunta específica era: quais são os significados de ser branco em uma sociedade que tem racismo estrutural? Entrevistei diversas pessoas brancas, e perguntei coisas como “o que é ser branco para você?”, “quando você percebeu que era branco?”. Falei com ex-donos de fazendas de café, descendentes de imigrantes de classe média, estudantes, moradores de rua. E percebi que todos os entrevistados mostravam em algum momento que acreditavam ter algum tipo de superioridade moral, intelectual ou estética por ser brancos. E todos as associações citadas pelos entrevistados com “ser branco” eram positivas – não havia referências a coisas como a escravização, o holocausto dos judeus. Só se produz significados positivos associados a “ser branco”. O maior poder do branco é justamente o de classificar: os brancos que classificaram os outros, como negros, como indígenas; e se classificaram como algo positivo, e também como padrão.
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O título do livro vem de uma citação de um dos entrevistados, que é um branco da Paraíba: na Paraíba, ele é considerado branco; em Tiradentes, no bairro pobre onde ele mora, ele é branco; mas no Sumaré, o bairro onde ele trabalha, ele é “nordestino”. E na entrevista comigo ele disse: “Eu sei que sou um branco encardido. O branco que é branco mesmo sabe que tem antepassados alemães, italianos; eu não sei quem são os meus antepassados, não sei de onde eu vim.” A ideia de raça branca está associado a essa origem europeia e também produz subdivisões internas.
Em um artigo recente escrito para a Folha, você comenta sobre o medo branco de ter a racialidade marcada; algo que acontece há séculos com negros e indígenas no Brasil. Você pode explicar um pouco melhor o que é esse processo, e por que você identifica esse medo nos brancos brasileiros?
A expressão “medo branco” vem primeiramente de um livro que se chama Onda Negra, Medo Branco, de Célia Marinha de Azevedo. Nesse livro ela explica que, no pós-abolição, houve um medo da “haitinização” da América Latina, porque houve a Revolução do Haiti – em que os negros tiveram autonomia para decidir seu destino. Um dos capítulos do meu livro se chama O Medo Branco Revisitado no Século XXI, quando esse medo é uma reação de defesa dos privilégios e do lugar de poder. Quando começaram as cotas, por exemplo, vimos manifestações muito mais fortes de brancos racistas no Brasil – e não é que eles não fossem racistas antes; é só que os privilégios deles não estavam ameaçados antes. Ao ser nomeados pelo outro como brancos, nós também precisamos nos responsabilizar por uma herança histórica bem ruim; que é a herança de quem carregou o chicote na mão.
Como eu citei antes, o branco se vê como padrão: quando a gente estuda “história geral” na escola, na verdade está estudando a história da Europa. As histórias indígena, africana, latino-americana, são todas particulares, separadas. Se a gente está em uma universidade onde só há brancos, a gente não fala “nossa, quantos brancos”; mas, se estivermos em uma universidade onde só há negros, vamos nomeá-la como uma “universidade de negros”. Há uma invisibilidade da própria raça para os brancos, criada por eles mesmos. Os negros e os indígenas nomeiam os brancos há mais de quinhentos anos; os guarani nos chamam de juruá, os “homens brancos”. Só que as classificações feitas por eles não chegam a capilarizar na sociedade, porque eles não têm esse poder. O problema não é nomear o outro, exatamente; é que essa nomeação tenha poder de ser tida como regra.
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Você é branca, mas estuda e fala sobre o racismo. Como, de que maneira, em quais contextos, uma pessoa branca pode ou deve falar sobre o racismo?
Todo mundo pode falar sobre o racismo, desde que saiba do que está falando. O problema é um monte de brancos que não entendem do assunto querendo falar, querendo “dar opinião”. O racismo não é uma questão de opinião. Eu acho que as pessoas devem falar; mas devem entender do assunto para falar – assim como sobre qualquer outro assunto. As pessoas não entendem muito bem a expressão “lugar de fala”, por exemplo: o lugar de fala é justamente isso, o lugar de onde a pessoa fala. Eu, por exemplo, quando falo sobre racismo, falo do lugar de uma pessoa branca, que estudou o tema. A expressão “lugar de fala” não é uma proibição de fala; é entender que o lugar de onde a pessoa fala vai produzir influências na forma como ela pensa, já que não existe neutralidade na linguagem. E todo mundo vive a experiência de raça no Brasil, os brancos vivem a experiência de raça no Brasil, do ponto de vista do privilégio. É esse lugar de onde eu falo. É mentira dizer que os movimentos negros, por exemplo, atacam brancos que falam sobre o racismo: o branco é criticado se falar besteira sobre o racismo, se não souber do que está falando.
Qual é o papel dos brancos na luta antirracista?
Qualquer branco que acredite em igualdade e lute por igualdade deveria estar na luta antirracista. A raça não é só uma categoria identitária, ela é uma categoria que produz desigualdade. O branco não vai estar no movimento negro; o movimento negro é para os negros. Um homem pode lutar por igualdade de gênero, mesmo sem estar no movimento feminista, por exemplo. O branco que deseja um país melhor precisa ser antirracista. O racismo empobrece o país: produz a ideia de que há pessoas que valem menos, produz violência. Embora o racismo não faça mal aos brancos como indivíduos – já que, pelo contrário, coloca os brancos em um lugar de vantagem estrutural -, ele prejudica o país como um todo.
É importante ressaltar também que a luta antirracista não é só uma luta contra o preconceito em si – ela se expande para outros debates. Por exemplo, você não pode apoiar a luta antirracista e a minoridade penal ao mesmo tempo. Quem é que iria ser preso e morrer com a minoridade penal? Os meninos negros, não os meninos brancos. Ou ser a favor de uma política econômica de austeridade, porque a população negra é a que mais depende do Estado para ter acesso à saúde, à educação. A luta antirracista se amplia para diversos outros pontos; e ela também é uma prática diária. Não adianta você se posicionar como antirracista e não levar isso em conta na hora de escolher os brinquedos dos seus filhos, os desenhos que eles vão assistir; não levar isso em conta na hora de contratar alguém para a sua empresa; na hora de chamar alguém para participar de um debate. Se os negros só são chamados para opinar quando o assunto é racismo, eles estão sendo reduzidos à ideia de raça.
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Como é o debate sobre racismo na academia hoje, e o quanto ele mudou desde que você começou a pesquisar o tema?
Mudou mundos. Quando eu comecei, as cotas nem haviam sido aprovadas: quando me formei, eu não tinha um colega negro no curso todo. E todo mundo era abertamente contra cotas. Hoje eu sou professora de psicologia na UFSC, e toda turma tem alunos negros, que pautam o debate, que têm um protagonismo muito importante. Quando eu comecei a estudar, as pessoas falavam muito que não existe racismo no Brasil.
Eu acho que ainda precisa mudar essa ideia de que o racismo é um problema moral; a ideia de que, se eu sou uma pessoa boa, eu não sou racista. Não é assim que funciona; as pessoas no Brasil aprendem a ser racistas. Nem sempre nós percebemos o racismo institucional em locais onde não estamos presenciando uma cena de racismo interpessoal, por exemplo. O debate público mudou muito, mas eu não sei se a violência racial mudou também. E eu acho que não.