Fernanda Abreu está feliz da vida aos 60 anos: ativa, cheia de planos, linda, e com aquele jeito cool que ela conserva desde os anos 1980, quando entrou para a banda Blitz – um marco na música nacional, considerada uma das precursoras do movimento BRock. A partir de 1990, Fernanda deixou sua assinatura também no pop: com seu álbum SLA Radical Dance Disco Club, ela praticamente inaugurou um gênero que era considerado “sem mercado” no Brasil, abrindo caminho para tantos artistas que vieram depois dela.
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Em setembro deste ano, a cantora e compositora marcou as celebrações de 30 anos de carreira solo com a estreia de 30 Anos de Baile, álbum que reuniu DJs nacionais e internacionais para criar remixes de músicas de diferentes fases da sua trajetória. Fernanda se mostra ansiosa principalmente para voltar aos palcos, dos quais nunca se afastou por tanto tempo desde que ingressou na carreira musical. E tem outras ideias, muitas: pensa em uma exposição; quer fazer um documentário sobre o álbum Da Lata, que a lançou internacionalmente; planeja um disco “feminino/feminista”, nas palavras dela, com parcerias com outras cantoras pop brasileiras.
Muita gente, aos 60 anos, poderia pensar em desacelerar. Fernanda vai na direção contrária: “Sei lá como é que minha cabeça vai estar aos 70, né?”, pondera. “Acho que ainda muito produtiva, mas talvez com outra velocidade… Então quero dar essa acelerada dos 60 aos 70. Tem muita coisa que eu quero fazer.”
Confira abaixo a entrevista completa.
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Como surgiu a ideia de comemorar os 30 anos de carreira com um álbum de remixes?
Fernanda Abreu: No final de 2019, eu estava encerrando a turnê do álbum de inéditas Amor Geral, que eu lancei em 2016, e recebi um convite pra fazer um registro desse show no [Teatro] Imperator, no Rio de Janeiro. Então eu pensei: “Caramba, em 2020 eu vou fazer 30 anos de carreira solo, desde o lançamento do SLA Radical [Dance Disco Club]; acho que vou sentar pra pensar num projeto de comemoração.” Então eu desenhei esse projeto. Ele começaria com o lançamento de um single novo para o meu público, um material inédito. Aí, em março de 2020, eu lancei um single chamado Do Ben, uma música em homenagem ao Ben Jor.
No dia 13 de março eu gravei o DVD Amor Geral (A)LIVE, lá no Imperator. E eu já tinha essa ideia do álbum de remixes: o 30 Anos de Baile fazia parte desse pacote de conteúdos comemorativos de 30 anos de carreira. Acabei também incluindo o lançamento de duas coletâneas: a Slow Dance, com as minhas baladas; e a Lado B, com músicas que não foram tão executadas nas rádios, mas que falam muito sobre a linguagem musical desses 30 anos. Teve também o convite da Noise Records para relançar em vinil o SLA Radical. Então, no começo de 2020, eu estava com muitos projetos legais. Aí eu chamei o DJ Memê para ser o diretor artístico desse disco, o curador, junto comigo. O Memê é um amigo de muitos anos, que estava lá no meu primeiro disco; junto com o DJ Malboro, outro amigo que sempre esteve presente na minha carreira.
Como foi feita a seleção das músicas e dos DJs?
Começamos definindo quais DJs íamos convidar, porque tem tanta gente legal! Claro, eu ia para um lado mais afetivo, primeiro: pessoas mais próximas de mim, como o Zé Pedro, o Ruxell, o Gui Boratto, o Dennis DJ. Fui vendo se eles tinham vontade de fazer, e se tinham agenda. Acho que uma decisão importante foi não dizermos a ele quais músicas cada um deveria fazer, e sim eles mesmos escolherem em quais faixas queriam trabalhar. E foi muito legal, porque ninguém escolheu a mesma música que o outro. Foi fluindo incrivelmente bem.
A única música que me preocupou foi Rio 40 Graus, porque ninguém quis fazer. Falei: “Nossa, Memê, o que a gente vai fazer? Vai deixar de fora esse grande sucesso?”. E ele decidiu chamar um DJ de fora, um amigo dele, o Ani Phearce, de Miami, que teve um outro olhar sobre a música: ele não entende muito português, então focou mais no groove, na dinâmica da letra, do rap. Ele fez um reggaeton, e ficou super legal.
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Como você se sente com a chegada aos 60 anos de idade?
A única coisa chata dos meus 60 anos foi que eu não pude fazer a grande festa que eu sempre sonhei. Eu sou muito festeira. Quando fiz 30 anos eu fiz uma mega festa na minha casa; e eu queria marcar os 60, chamar umas 200 pessoas. Desde os meus 58 anos eu já vinha conversando com meus amigos, minhas filhas, dizendo que ia fazer uma puta festa. Aí veio a pandemia, e eu não fiz nada. Isso foi uma frustração. (risos)

Mas, de resto, eu estou muito bem. Estou bem de cabeça, bem fisicamente, muito produtiva. Ao longo da pandemia eu tive essa oportunidade de fazer as coletâneas e pude ouvir todos os meus discos de novo, que eu nunca fui de ouvir muito – só ouvia para montar o show, mesmo, e depois nunca mais. Enquanto fazia isso, fui me sentindo muito grata pela minha trajetória dentro da música. Vi tanta coisa acontecer! O funk carioca ganhando espaço; o ofício do DJ ganhando reconhecimento; a música pop nacional sendo dominada por beatmakers, caras que trabalham com samples, com programações. É um trabalho que sempre me deu muito prazer.
Gosto de falar que tenho 60 anos, gosto de falar que tenho 30 anos de carreira, porque sempre teve essa onda de que o pop é descartável, é efêmero. Então eu consigo mostrar pra essa galera nova, todas essas meninas ótimas que estão surgindo, que eu estou aí há 30 anos. Existe fazer uma carreira longeva no pop brasileiro dançante.
Mas a indústria do pop de fato pode ser cruel, né? Parece que o mais importante é sempre a novidade. E, com as artistas mulheres, isso costuma ser ainda pior.
O pop tem esse viés da fórmula. “Ah, o Bruno Mars está fazendo sucesso com esse tipo de música, então vamos colar nessa produção musical.” Aí vários artistas colam nisso; alguns se destacam, outros caem. Agora todo mundo quer fazer funk pop, porque a Anitta conseguiu fazer isso muito bem. Mas eu acho que o mais importante é ter uma certa autenticidade. O que mantém você relevante e as pessoas ainda querendo saber o que você faz, quais são os assuntos das suas músicas, qual é a sua linguagem musical, é tentar caminhar na contemporaneidade por si mesmo – não ficar atrás do que está sendo feito, porque não acrescenta em nada. Eu escuto de tudo o que está sendo feito ao meu redor, mas procuro sempre a minha assinatura. Acho que é muito diferente o artista que tem sua própria linguagem estética, sua própria pesquisa, seu próprio conceito.
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E sim, tem a coisa de ser mulher, também. Mas isso não é exclusividade do pop, né? A gente vive em um mundo machista em que o homem de 50 anos é tratado de uma forma completamente diferente da mulher de 50 anos. Parece que a mulher, ainda mais artista, tem a obrigação de se manter jovem para estar onde quer que esteja. Para o homem sempre tem umas desculpas de “ah, ele envelheceu, mas ele tem charme.” Acho que isso até dá uma piradinha na cabeça de várias mulheres, que começam a fazer procedimentos estéticos e perdem a mão. Tem essa ditadura da juventude no pop.
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Uma coisa que me deixa feliz é ver que há cada vez mais mulheres compondo. O Brasil tem uma longa tradição de mulheres intérpretes: Angela Maria, Elizete Cardoso, Maísa, Gal, Betânia, Elis. Mas cada vez as mulheres são mais compositoras, o que é interessante demais, porque traz para as músicas o mundo delas: o que elas consideram importante, o que elas propõem de reflexão. Anitta, Ludmilla, Luisa Sonza, Iza, todas elas são artistas que têm muito o que dizer, cada uma à sua maneira.
Sinto que hoje em dia elas são mais donas das próprias carreiras, também, não só das composições.
Tem muito a ver com a mudança gigantesca que a gente viu na indústria fonográfica nos últimos 20 anos. Até 2000, a indústria funcionava de uma forma: a gravadora contratava o artista, que gravava o álbum no estúdio da gravadora, e aí seguia toda aquela formatação de divulgação, TV, rádio, turnê… Com o digital, as pessoas começaram a gravar discos em casa; não precisavam mais de gravadora pra nada. Tem o YouTube pra divulgar. Democratizou demais a produção musical e o consumo da música.
Isso por um lado foi super importante, para abrir espaços e dar oportunidade para que muito mais gente conheça os artistas; mas também deu uma super diluída no cenário. Antigamente você tinha esses mega artistas, Michael Jackson, Madonna, ícones, que todo mundo ouvia, todo mundo conhecia. Hoje são nichos; cada um conhece e gosta dos artistas do seu nicho. Em 2003, quando lancei meu selo, o Garota Sangue Bom, eu já fiz isso pensando em todo esse novo cenário; em ser a detentora dos meus próprios fonogramas e gravações, em abrir minha editora para ser detentora dos meus próprios direitos autorais. O artista tem hoje que gerenciar o time que administra todas as frentes da sua carreira.
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Como você vê o cenário do pop brasileiro atualmente? O que você anda ouvindo?
Eu escuto de tudo. Tenho isso de escutar o que está saindo, o que acabou de ser lançado; desde os mais novos até dos meus colegas de geração, Lenine, Brown, Frejat. Desde pequena, lá em casa, meus pais sempre gostaram muito de música: depois do jantar um de nós escolhia um disco para botar na vitrola e ouvir. Tive a sorte de crescer em uma casa que entendia a riqueza melódica, rítmica, poética da música brasileira.
No pop brasileiro atualmente temos uma rainha, a Anitta, que é incrível; uma Carmem Miranda do século XXI, nossa pequena notável. Sou fã dela. Adoro a Iza; acho uma cantora incrível, com letras que falam muito sobre o universo dela. Tem um outro lado do funk, que eu acho que martela muito no lado sexual, é muito “senta, senta, senta”. Os beats são ótimos, os caras estão arrebentando; mas eu acho que as letras às vezes são muito mais do mesmo. Entendo que tem a ver com essa pegada do empoderamento feminino, que eu acho um dos movimentos mais importantes do mundo; mas eu gostaria de ser surpreendida nesse sentido das letras.
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Você mesma sempre foi um símbolo do empoderamento feminino, por meio da sua carreira; e sempre se manifestou a respeito dessa e de outras pautas sociais e humanitárias. Como você vê artistas que preferem não se posicionar a respeito desse tipo de coisa?
Olha, eu não acho que o artista seja obrigado a se posicionar politicamente, mas eu me posiciono. Acho interessante o artista ter a consciência de que ele tem uma voz. Acho muito legal artistas que trazem reflexões a partir da própria música, como o Bayana System, por exemplo. E, como fã, eu me interesso em saber o que os artistas que eu admiro pensam sobre o Brasil, sexo, política. É tipo o Eric Clapton! [Clapton causou polêmica nos últimos dias, ao se colocar contra medidas de prevenção ao coronavírus e disseminar faltas notícias a respeito das vacinas.] Eu me frustro, fico decepcionada. Eu imaginaria que o cara pensaria de outra maneira, sei lá.
E é um negócio bizarro o tanto que ainda existe violência contra a mulher, por exemplo. Os números… Não dá nem pra acreditar. Quando leio essas coisas tipo “a cada 15 segundos, uma mulher é violentada no Brasil”, sei lá, eu juro que fico nervosa, fico suada. É como pensar nessa coisa dos 20 milhões abaixo da linha de pobreza. Não é militância, não é panfletagem, mas gente, isso afeta a vida de qualquer pessoa. Não sei como a gente consegue consegue conversar sobre outra coisa enquanto isso acontece. Ninguém consegue acordar de manhã e ser 100% feliz enquanto o país estiver nessa miséria. A rua é uma extensão da nossa casa, não é? A vida acontece nos nossos encontros. Então eu penso muito nessa coletividade.
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O que você pensa a respeito da política brasileira em 2021, e o que acha ou espera que aconteça no ano que vem, inclusive com a realização das eleições?
Para mim, o governo Bolsonaro não é uma questão de esquerda ou direita, é uma questão de barbárie versus civilização. Nós temos um grupo de artistas que atuam politicamente em pautas voltadas à música desde 1996, o Grupo de Ação Parlamentar Pró-Música, que tem o Ivan Lins, Frejat, Leoni, Leo Jaime, eu, tantos outros; e eu já fui várias vezes ao Congresso Nacional, e nunca vi Bolsonaro por lá. Ele foi totalmente irrelevante ao longo de todos esses anos. Fico muito triste de ver o Rio de Janeiro como um reduto dos Bolsonaro, com os filhos dele lá, com a milícia toda. A gente tem que mudar isso, para que o Rio seja refundado.
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Sabe, o Brasil sempre teve gente de direita, e sempre teve gente de esquerda. Mas a gente não via esse flerte com o fascismo. Pessoas entrando na Câmara dos Vereadores em Porto Alegre com uma suástica na mão – aliás, deveriam ter saído de lá presas. A gente tem uma direita radical que se orgulha de pautas homofóbicas, racistas, machistas. É um grupo muito raivoso. A gente vive um governo que mente. Mente descaradamente. É um jogo sujo, não é um jogo limpo. Esse governo destruiu muita coisa – fez questão de destruir a área cultural, por exemplo; tratando os artistas como inimigos, demonizando a arte, a educação. E nem acho que é loucura; acho que é parte de um projeto. E tem uma parte da população que se identifica com o projeto desse governo.
Meu feeling é que o Bolsonaro não se reelege: acho que ele chegou em um ponto de desgaste muito grande, especialmente com a pandemia, com a CPI da Covid – que foi uma coisa muito importante, que esclareceu muita coisa. Qualquer outro governo, de direita ou de esquerda, teria feito uma campanha massiva na televisão já no comecinho da pandemia; de vacinação, distribuição de máscaras, de álcool em gel. Tentaria salvar a economia, mas colocando a vida humana em primeiro lugar. Qualquer governo. Tanto que agora todos eles, até os de centro, estão fazendo de tudo pra se afastar do Bolsonaro; mesmo quem apoiou o nome dele em 2018. Pelo menos isso é um bom sinal. O Bolsonaro vai ter que abrir o bolso e usar muito dinheiro pra ter apoio de alguém em 2022.
Além de todo esse cenário nacional, como a pandemia impactou você em um nível mais pessoal?
Foi muito difícil, acho que pra todo mundo. Tinha uma tristeza que pairava; aquela angústia de todo dia ligar a televisão e ver mais dois mil mortos, mais dois mil mortos. Também tinha uma insegurança muito grande, porque é um vírus traiçoeiro, que a gente não sabia direito como agia, como funcionava. Todo mundo tinha muito medo.
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No dia 13 de março, o primeiro dia do lockdown no Rio de Janeiro, eu estava no Imperator para gravar o DVD, quando apareceu alguém falando que não ia poder ter público. Eu achei até que era brincadeira; falei, tudo bem, vai ter um lockdown, mas tipo semana que vem, né? Ninguém faz um decreto de agora pra agora. Mas era para aquele dia mesmo. Eu chamei minha banda e falei “gente, tudo bem, vamos cancelar o show para o público, mas vamos gravar o DVD. Temos estrada o suficiente para imaginar que tem duas mil pessoas aqui cantando e dançando com a gente. Vamos seguir direto e pronto.” Uma semana depois meu pai faleceu; não de Covid. Uma pessoa muito muito próxima de mim, morava de frente para a minha casa.
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Então eu tive duas opções: cair em uma depressão profunda, ou me emburacar no trabalho. E foi o que eu fiz: trabalhava de dez da manhã às duas da madrugada, todo dia, sem parar. Para mim, foi muito duro ficar sem subir no palco. Eu não parei nem nas duas vezes em que engravidei. Dois meses depois de parir eu já estava no palco de novo. Acho que desde 1982 eu nunca tinha passado três meses sem fazer show. Tinha saudade das coisas mais chatas, de ficar três horas em conexão em aeroporto. Fiz lives, o que me ajudou, mas era muito estranho terminar uma música e aquele silêncio, sem aplauso.
Você ainda é muito referida como a “Garota Carioca Suingue Sangue Bom”. Ainda se identifica com esse título?
Me identifico totalmente. Acho que vou ser uma velhinha de 90 anos garota sangue bom. (risos) A garota carioca fala sobre essa mulher que é tão importante ser: uma mulher independente, que constrói sua vida, que faz o que quer fazer. É essa garota que neguinho vê e fala que tem “marra”; mas não é marra, é independência, confiança. Acho que a garota carioca combina muito comigo. E o sangue bom é um adjetivo que tem a ver com o outro: quando alguém é sangue bom, ele é sangue bom com os outros, leva em conta os outros. E as minhas grandes conquistas são minhas filhas, meus amigos, meu marido, minha carreira. A grande riqueza da vida, pra mim, são os encontros.
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