Posando sorridente para uma foto, enquanto molhava um naan em daal (pão e sopa típicos da Ásia Meridional), o médico Wahid Majrooh, 36 anos, anunciava o fim da experiência mais intensa da vida. Foram 37 dias servindo, como ministro da saúde, um regime no qual ele não acreditava, sofrendo com intimidações diárias e com a indiferença da comunidade internacional.

Continua depois da publicidade

– O meu foco estava no sistema de saúde e na disponibilidade de serviço ao meu povo, além de fazer todo o possível para encontrar soluções aos desafios impostos pelo congelamento de doações internacionais – contou o ex-ministro da saúde do Afeganistão, em entrevista exclusiva ao Diário Catarinense, na semana em que deixou o cargo.

> Receba as principais notícias de Santa Catarina pelo Whatsapp

Durante a tomada do poder pelo Tabliã, não foi fácil convencer a esposa a ficar com a filha do casal de um ano e três meses em Cabul, capital do país. Semanas antes, o médico obstetra até considerou fugir com a família, ao ver os fundamentalistas islâmicos tomando à força as cidades mais importantes do interior, mas mudou de ideia na última hora:

– Se eu partisse e algo acontecesse em Cabul, se a batalha começasse pelas ruas, como eu poderia esperar que o diretor de um hospital ficasse em seu posto, tendo o ministro da saúde fugido do país? O que aconteceria com todas as vítimas desse conflito?

Continua depois da publicidade

Depois de uma longa conversa, a esposa concordou em ficar ao lado dele.

Carreira no ministério

Majrooh, que é mestre em Políticas de Saúde Global pela Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, foi anunciado ministro da saúde em janeiro deste ano pelo ex-presidente Ashraf Ghani. Antes disso, o médico já havia exercido diversas funções no Ministério da Saúde, onde trabalhava há mais de cinco anos.

Durante boa parte desse período ele foi “a cara da saúde pública afegã” na mídia, sendo porta-voz da instituição e secretário especial do ministério. Uma marca da atuação do médico natural da província de Herate no ministério era fazer questão de visitar as unidades de saúde no interior do país: regiões montanhosas e palco de constantes conflitos.

> SC prepara decreto com novas regras sobre uso de máscaras

A confiança conquistada junto ao povo afegão, desde aquela época, lhe deu a credibilidade necessária para aparecer na televisão, ao lado de representantes do Talibã, e pedir que os profissionais da saúde, e aqueles que trabalhavam no ministério, voltassem aos postos de trabalho, especialmente as mulheres.

– Chamá-los ao trabalho foi uma decisão difícil para mim. Assumi todos os riscos, não só em relação a minha vida, minha reputação e minha integridade, mas também dos membros da minha equipe – relatou.

Continua depois da publicidade

> Catarinense que escapou da morte enfrentando talibãs no Afeganistão fala no CBN Hub

Era ainda 16 de agosto, dia seguinte à invasão do grupo extremista na capital. O caos estava instalado na cidade: ouviam-se tiros por todas as partes, casas eram invadidas e revistadas, enquanto milhares de pessoas lotavam o aeroporto de Cabul procurando desesperadamente deixar o país.

Colapso na saúde

Mas, para ele, o que causava mais sofrimento era lidar com a falta de recursos para manter o sistema de saúde funcionando. O ministro explicou que, além de não terem uma estrutura básica para trabalharem, os salários dos profissionais de saúde não estavam sendo pagos:

– Quando não há uma motivação, é muito difícil para você manter uma equipe em ação.

Enquanto conversava com o DC, numa manhã de outono em Cabul, o ministro Majrooh se lembrava da ansiedade para que o Talibã anunciasse o substituto dele. Na primeira semana de setembro, as expectativas eram altas, quando o médico chegou a afirmar à reportagem que a transição poderia acontecer nos próximos dias.

Em 7 de setembro, uma lista com 33 nomes de novos ministros foi anunciada pelo regime. Nenhum deles correspondia ao Ministério da Saúde. Mais algumas semanas se seguiriam ao lado do grupo extremista.

Continua depois da publicidade

– Não me escondi, não desliguei meu celular, não desperdicei os momentos nos quais poderia trazer benefícios ao meu povo – disse Majrooh sobre os momentos estressantes no ministério.

wahid-majrooh-2
Majrooh durante uma das visitas a unidades de saúde afegãs (Foto: Arquivo Pessoal)

O clima de incertezas aprofundou a depressão da esposa do médico que, há três semanas, está na casa dos pais, na província de Herate, a mais de 800 quilômetros de Cabul.

– Nós conversamos pelo WhatsApp a todo instante, ela sempre se mostra preocupada. Ela diz: “Meu corpo pode estar em Herate, mas meus pensamentos estão em Cabul contigo” – relata Majrooh.

> Apedrejamento e proibição de estudos: como o Talibã ameaça mulheres no Afeganistão

Após ser substituído, Majrooh evita opinar sobre o sucessor, o talibã Qalandar Ebad, com quem trabalhou por mais de uma semana para fazer a transição.

Continua depois da publicidade

– Desejo a ele sucesso, acredito que essa é a melhor coisa que posso fazer, uma vez que se o sistema de saúde falhar, não é um fracasso individual, mas é um fracasso que o povo do Afeganistão, as mães e as crianças que vão sofrer – afirma.

Sob nova liderança

O Ministério da Saúde foi a única instituição do antigo regime que permaneceu funcionando, depois da retomada do poder pelo talibã. Mas, no dia a dia no escritório, nada era como antes. Agora, o ministro e a equipe eram observados de perto por membros da Comissão de Saúde dos Emirados Islâmicos do Afeganistão, grupo criado pelo Talibã para a transição no ministério. 

– Eu não tinha a autoridade total que eu costumava ter, ao mesmo tempo que as expectativas estavam mais altas que nunca.

> Aposta de SC ganha R$ 5,6 milhões na loteria; veja a cidade

Mesmo colaborando com o novo regime, o médico era recorrentemente intimidado. Em especial no trajeto entre a casa e o trabalho. Só na primeira semana, ele foi parado duas vezes por homens fortemente armados. A primeira, foi perto do aeroporto de Cabul. 

Continua depois da publicidade

– Eles quiseram levar meu carro porque era um veículo do Estado – explicou. 

Já na segunda, homens armados não permitiram que o carro sequer saísse do condomínio onde vive. Nem os talibãs que trabalhavam com ele no ministério foram capazes de convencer os homens a deixá-lo partir. Naquele dia, o ministro foi e voltou do trabalho de táxi, sem qualquer tipo de segurança. 

– Nos últimos 13 dias fiquei completamente desprotegido, não tinha nenhum guarda-costas… Onde quer que eu vá, as pessoas me reconhecem. Então, isso me expõe a mais riscos ainda – contou Majrooh, que afirmou ter sofrido com dificuldade para dormir e depressão, causadas pela experiência.

Novo normal

Sozinho na capital do país dominada pelo Talibã, Majrooh tenta voltar à vida normal atendendo na clínica de ultrassonografia dele, onde também dá mentoria a jovens profissionais que querem aprender a utilizar o equipamento. O sonho dele é trabalhar em alguma organização internacional na área da saúde.

> Queima de fogos tem recorde de ofertas milionárias em BC

Enquanto isso não acontece, planeja lançar um livro contando a experiência de mais de um mês ao lado do Talibã, consciente de que a vida dele, assim como a do seu povo, nunca mais será a mesma. Apesar disso, Wahid Majrooh diz não se arrepende da decisão: 

Continua depois da publicidade

– Estou feliz em ter ficado no meu país. 

Quando perguntado especificamente sobre o Talibã, Majrooh é cauteloso com o que diz, especialmente após sua saída do ministério. “Eu sei que você vai entender minha situação: eu estou sozinho em Cabul e ainda estou vivendo na cidade. Então eu tenho que ser cuidadoso com a minha vida, também”, comenta. A preocupação não é à toa. 

*Texto de Gabriel Guimarães

Leia também:

> Vereadora quer derrubar o passaporte da vacina na Capital

> É falso que novos radares da BR-101 de SC vão ser ativados em novembro; entenda

> SC ultrapassa marca de 10 milhões de vacinas contra Covid aplicadas